A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?
IX
“Conta-se que havia na China uma mulher
belíssima que enlouquecia de amor todos
os homens. Mas certa vez caiu nas
profundezas de um lago e assustou os peixes.”
Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo
Pensando
Que se a mim não deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.
E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
Preexistida e exata
Apenas tu, Dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas tuas águas.
X
Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa
E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.
Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, Dionísio, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.
Hilda Hilst
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
sexta-feira, 7 de outubro de 2011
Claricices
Come, meu filho (Clarice Lispector)
- O mundo parece chato mas eu sei que não é. Sabe por que parece chato? Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. Eu sei que o mundo é redondo porque disseram, mas só ia parecer redondo se a gente olhasse e às vezes o céu estivesse lá embaixo. Eu sei que é redondo, mas para mim é chato, mas Ronaldo só sabe que o mundo é redondo, para ele não parece chato.
- . . .
- Porque eu estive em muitos países e vi que nos Estados Unidos o céu também é em cima, por isso o mundo parecia todo reto para mim. Mas Ronaldo nunca saiu do Brasil e pode pensar que só aqui é que o céu é lá em cima, que nos outros lugares não é chato, que só é chato no Brasil, que nos outros lugares que ele não viu vai arredondando. Quando dizem para ele, é só acreditar, pra ele nada precisa parecer. Você prefere prato fundo ou prato chato, mamãe?
- Chat... raso, quer dizer.
- Eu também. No fundo, parece que cabe mais, mas é só para o fundo, no chato cabe para os lados e a gente vê logo tudo o que tem. Pepino não parece inreal?
- Irreal.
- Por que você acha?
- Se diz assim.
- Não, por que é que você também achou que pepino parece inreal? Eu também. A gente olha e vê um pouco do outro lado, é cheio de desenho bem igual, é frio na boca, faz barulho de um pouco de vidro quando se mastiga. Você não acha que pepino parece inventado?
- Parece.
- Onde foi inventado feijão com arroz?
- Aqui.
- Ou no árabe, igual que Pedrinho disse de outra coisa?
- Aqui.
- Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor. Para você carne tem gosto de carne?
- Às vezes.
- Duvido! Só quero ver: da carne pendurada no açougue?!
- Não.
- E nem da carne que a gente fala. Não tem gosto de quando você diz que carne tem vitamina.
- Não fala tanto, come.
- Mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?
- Adivinhou. Come, Paulinho.
- Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece.
- O mundo parece chato mas eu sei que não é. Sabe por que parece chato? Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. Eu sei que o mundo é redondo porque disseram, mas só ia parecer redondo se a gente olhasse e às vezes o céu estivesse lá embaixo. Eu sei que é redondo, mas para mim é chato, mas Ronaldo só sabe que o mundo é redondo, para ele não parece chato.
- . . .
- Porque eu estive em muitos países e vi que nos Estados Unidos o céu também é em cima, por isso o mundo parecia todo reto para mim. Mas Ronaldo nunca saiu do Brasil e pode pensar que só aqui é que o céu é lá em cima, que nos outros lugares não é chato, que só é chato no Brasil, que nos outros lugares que ele não viu vai arredondando. Quando dizem para ele, é só acreditar, pra ele nada precisa parecer. Você prefere prato fundo ou prato chato, mamãe?
- Chat... raso, quer dizer.
- Eu também. No fundo, parece que cabe mais, mas é só para o fundo, no chato cabe para os lados e a gente vê logo tudo o que tem. Pepino não parece inreal?
- Irreal.
- Por que você acha?
- Se diz assim.
- Não, por que é que você também achou que pepino parece inreal? Eu também. A gente olha e vê um pouco do outro lado, é cheio de desenho bem igual, é frio na boca, faz barulho de um pouco de vidro quando se mastiga. Você não acha que pepino parece inventado?
- Parece.
- Onde foi inventado feijão com arroz?
- Aqui.
- Ou no árabe, igual que Pedrinho disse de outra coisa?
- Aqui.
- Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor. Para você carne tem gosto de carne?
- Às vezes.
- Duvido! Só quero ver: da carne pendurada no açougue?!
- Não.
- E nem da carne que a gente fala. Não tem gosto de quando você diz que carne tem vitamina.
- Não fala tanto, come.
- Mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?
- Adivinhou. Come, Paulinho.
- Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece.
sábado, 1 de outubro de 2011
Estavam Pedroca, Yanni e o vovô no parque. A Dona Nani, sapeca que só, já foi tirando as sandálias, rolando na terra, feliz da vida.
O vovô, preocupado:
- Yanni, vamos colocar a sandalinha?
A Yanni, delicadamente, cantarolando:
- Não...
O vô insiste:
- Vamos, coloca a sandália, Yanni.
- Não...
De repente, fiat lux! O vô vê o Buzz Lightyear na mão do Pedroca:
- Olha, Yanni, até o Buzz está com sapatinho. Vamos colocar a sandalinha, que nem ele?
Vem a ansiada resposta:
- Sim!
Dona Nani pega as sandalinhas abandonadas na terra e vem toda pirilampa em direção ao vô e ao Pedroca. Senta-se e... coloca as sandálias no Buzz.
O vovô, preocupado:
- Yanni, vamos colocar a sandalinha?
A Yanni, delicadamente, cantarolando:
- Não...
O vô insiste:
- Vamos, coloca a sandália, Yanni.
- Não...
De repente, fiat lux! O vô vê o Buzz Lightyear na mão do Pedroca:
- Olha, Yanni, até o Buzz está com sapatinho. Vamos colocar a sandalinha, que nem ele?
Vem a ansiada resposta:
- Sim!
Dona Nani pega as sandalinhas abandonadas na terra e vem toda pirilampa em direção ao vô e ao Pedroca. Senta-se e... coloca as sandálias no Buzz.
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