sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Legado

"Os saltimbancos" fazem parte da memória musical de muita gente da minha geração, dos filhos da ditadura, ou melhor, dos seus combatentes que não morreram na tortura ou no confronto. Lá em casa não fugimos à regra, ouvimos muito esse discão, em que o clássico alemão "Músicos de Bremen" ganha ares e vozes brazucas, contando às crianças de todas as idades uma história de resistência à opressão por meio da união dos mais fracos, que juntos se descobrem fortes. 
Essa lição se tornou mote de vida pra mim. Todos juntos somos fortes, não há nada pra temer. 
Ainda que tenhamos discordado em relação à atual situação política - a gente dizendo que é golpe, ditadura em novos moldes, meu pai dizendo que não sabemos o que é ditadura -, o que fica pra mim é o essencial: o exemplo de pessoas que nunca se conformaram com as injustiças e ensinaram os filhos a ir além dos lugares comuns e dos preconceitos.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Ao meu pai, com amor e saudade

"a vida é uma pausa luminosa entre dois grandes mistérios"  (C. G. Jung, Cartas)

A montanha encantada dos gansos selvagens (Rubem Alves)

Havia, certa vez, um bando de gansos selvagens… É preciso dizer que eram selvagens, para não confundir com os gansos domésticos. Gansos domésticos têm medo de voar, não gostam das alturas, preferem viver fechados em cercadinhos de tela, desde que seus donos lhes deem milho e verdura picada.
Ah! Como são diferentes os gansos selvagens. Não sabem o que é ser bicho de um dono. São livres. Voam muito alto. Viajam para lugares desconhecidos, distantes, ainda que isso seja perigoso…. São mais magros: devem ser livres para poder voar. E os seus olhos são diferentes.
É que eles viram estrelas e pores-do-sol que os gansos domésticos não podem ver.
Nossos gansos eram selvagens. Viviam livres, sem dono, numa linda planície . Havia florestas, e o cheiro das árvores, pelas manhãs, era gostoso. Seus companheiros eram os outros bichos que amam a liberdade: veados, esquilos, sabiás, pintassilgos, borboletas, abelhas…
No centro da planície havia um lago.
Era ali que os gansos brincavam. Era ali que eles ficavam mais bonitos. Todo o mundo sabe que os gansos são desajeitados, bamboleantes e engraçados na terra firme. Mas na água ficam serenos e calmos, como os navios…
Mas nem tudo era bom. Nada é perfeito. Lá viviam eles, alimentando-se de bichinhos e brotos tenros de verdura. Botavam seus ovinhos, chocavam gansinhos e os gansinhos cresciam….
Às vezes o calor era demais. Ou frio demais. E havia os caçadores, com suas espingardas, dando tiros, rindo quando uma ave morria…
Foi ali que nasceu um gansinho, bem pequeno, menor que um ovo. Tinha de ser. Pois é dentro dos ovos que as gansas botam, que os gansinhos se formam, a pouco e pouco.
Seu pai lhe contou no ouvido, como num segredo, o nome que havia escolhido para ele.
Não…..não foi Roberto, nem Ricardo, nem Dirceu… Foi Cheiro-de-Jasmim."Porque todo mundo que sente o cheiro de jasmim sorri, feliz… Quero que meu filho seja feliz… quero que ele faça os outros felizes", disse o papai Ganso.
"Se o pai ama o filho, o nome do filho deve ser algo que o pai tira do fundo de seu coração."
Havia muitos nomes lindos de gansos: Chuva-e-tarde-de-verão… Sombra-de-árvore… Liberdade… Voo-Alto… Amigo… Brilho-da-lua, etc.
Cheiro-de-Jasmim cresceu como todos os outros gansinhos. Não fez nada diferente. Aprendeu a andar, aprendeu a nadar, experimentou o calor e teve que se abrigar do frio, tremeu de medo ao ouvir o barulho das armas dos caçadores…
Mas havia algo de muito especial…. Ele gostava das horas que todos os gansos se reuniam, quando o sol ia se pondo… O sol se refletia, dentro do lago. Parecia uma fogueira… E Cheiro-de-Jasmim não entendia por que é que a água do lago não apagava o fogo do sol, lá no seu fundo… Esta era a hora em que os velhos se punham a contar estórias. E falavam especialmente das montanhas mágicas…Montanhas mágicas. Elas podem ser vistas lá longe, justo onde o sol estava se pondo. Eram altas, misteriosas, encantadas, A primavera durava sempre..não havia calor nem frio demais.E havia um fruto encantado, vermelho como o sol e que, se comido, fazia com que os gansos fossem jovens para sempre. Até os velhos e aleijados voltavam a ter os corpos de outrora, perfeitos, fortes, belos…..E, sobretudo, lá não havia caçadores.
– Se as montanhas mágicas são tão maravilhosas, por que é que não nos mudamos para lá? – perguntou Cheiro-de-Jasmim.
– É que elas são altas demais – respondeu o velho ganso, contador de estórias. Para se chegar até lá, o corpo tem que ficar leve, muito leve… é preciso ser como uma libélula... um papagaio flutuando ao vento… Somos pesados demais… sabem por quê? É que temos medo de tanta coisa. É o medo que nos faz pesados. E porque somos pesados ficamos com as caras tristes, cansadas... Quem tem cara triste não pode voar… mas quando o tempo vai passando, os gansos vão ficando leves, até que chega o dia do grande voo…
Cheiro-de-Jasmim olhou para o seu pai. Olhava este, para as montanhas encantadas. Já não havia mais o brilho do sol. Mas o brilho da lua as tornava mais belas ainda. E ele notou que seu pai, outrora pesado e sério, estava ficando mais leve.  Pela primeira vez ele sentiu uma tristeza  de pensar que, um dia, eles se separariam. Mas, por que partir, se a vida é tão boa?
– É necessário partir para continuar a viver, respondeu o velho ganso, adivinhando os pensamentos que passavam pela cabecinha de Cheiro-de-Jasmim…
– Quando se fica mais leve, fica difícil viver aqui. A comida, muito pesada, faz mal. O ar, muito pesado, faz mal. O frio dói nos pulmões. As coisas mais leves são mais belas e sobem mais. Mas são mais frágeis. Precisam de um ar diferente. E por isso é necessário partir para as montanhas encantadas… Um dia, o coração diz que é preciso partir para continuar a viver. Quando isso acontece, chegou a hora da despedida.
O tempo passou. Cheiro-de-Jasmim cresceu. Vieram seus filhos. Ele ficou pesado como todos os outros. Enquanto isso seu pai ficava mais leve… Até que chegou o dia do adeus. Nada mais segurava aquele ganso, mais selvagem e mais leve do que nunca. Estava pronto para a viagem misteriosa. Claro que havia algo que o prendia. O amor pelo lugar, o amor por todos. E especialmente, o amor por Cheiro-de-Jasmim. Como ele o amava! Cheiro-de-Jasmim chegou-se ao pai, abraçou-o e perguntou:
– Quando você partir, vai sentir saudades? O velho ganso se calou.Cheiro-de-Jasmim continuou:
– Não chore… eu vou abraçar você…
E assim, ficaram juntos, muito tempo, pensando que a vida era tão boa, tão bonita… O vento veio de mansinho, sem nenhum barulho. O velho ganso nem precisou bater as asas.  Ele estava leve, leve…. e ele partiu para a montanha encantada.
Todos se reuniram, como sempre faziam quando isso acontecia… Todos falavam da saudade e choravam… O mundo já não era o mesmo… Mas Cheiro-de-Jasmim podia jurar haver ouvido os risos de seu pai, tais como ouvira muitos anos atrás, quando era jovem e belo.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Ancestralidade

Conversa recente do Pedroca com vovô José.
Vô: - Pedro, um dia desses vou te contar sobre a história da minha família, meus avós, bisavós...
Aquilo que me contaram e de que me lembro.
Pedro: - Ah, que bom, vovô! Eu tô mesmo precisando saber mais sobre os homens das cavernas!


quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Caminhando e plantando que aqui tudo dá...



História do Brasil

A terra é mui graciosa,
Tão fértil eu nunca vi.
A gente vai passear,
No chão espeta um caniço,
No dia seguinte nasce
Bengala de castão de oiro.
Tem goiabas, melancias,
Banana que nem chuchu.
Quanto aos bichos, tem-nos muito,
De plumagens mui vistosas.
Tem macaco até demais
Diamantes tem à vontade
Esmeralda é para os trouxas.
Reforçai, Senhor, a arca,
Cruzados não faltarão,
Vossa perna encanareis,
Salvo o devido respeito.
Ficarei muito saudoso
Se for embora daqui.

MENDES, Murilo. Murilo Mendes — Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

domingo, 16 de outubro de 2016

Sempre tem outro jeito de ver... (ainda bem!)

                                                  Laerte, 1982.

Erro de português
Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio.

Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.

(Oswald de Andrade)

terça-feira, 27 de setembro de 2016



na túmida concha-coral
o caracol
inunda o silêncio
em sol

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Ai de ti, Copacabana! (Rubem Braga)

1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.

2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite. 
3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniqüidades e de tua malícia. 
4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.
5. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.
6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.
7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska. 
8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.
9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.
10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação. 
11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.
12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.
13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.
14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.
15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?
16. Antes de te perder eu agravarei tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.
17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.
18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas. 
19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.
20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará. 
21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.
22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!
Rio de Janeiro, 1958.
Imagem: Romanelli, Iemanjá, 2012 

sexta-feira, 5 de agosto de 2016


Beco do Sócrates, ilustração de João do Couto

Becos de Goiás (Cora Coralina)

Beco da minha terra... 
Amo tua paisagem triste, ausente e suja. 
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa. 
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio. 
E a réstia de sol que ao meio-dia desce, fugidia, 
e semeia polmes dourados no teu lixo pobre, 
calçando de ouro a sandália velha, 
jogada no teu monturo. 

Amo a prantina silenciosa do teu fio de água, 
descendo de quintais escusos 
sem pressa, 
e se sumindo depressa na brecha de um velho cano. 
Amo a avenca delicada que renasce 
na frincha de teus muros empenados, 
e a plantinha desvalida, de caule mole 
que se defende, viceja e floresce 
no agasalho de tua sombra úmida e calada. 

Amo esses burros-de-lenha 
que passam pelos becos antigos. Burrinhos dos morros, 
secos, lanzudos, malzelados, cansados, pisados. 
Arrochados na sua carga, sabidos, procurando a sombra,
no range-range das cangalhas. 

E aquele menino, lenheiro ele, salvo seja. 
Sem infância, sem idade. 
Franzino, maltrapilho, 
pequeno para ser homem, 
forte para ser criança. 
Ser indefeso, indefinido, que só se vê na minha cidade. 

Amo e canto com ternura 
todo o errado da minha terra. 

Becos da minha terra, 
discriminados e humildes, 
lembrando passadas eras... 
Beco do Cisco. 
Beco do Cotovelo. 
Beco do Antônio Gomes. 
Beco das Taquaras. 
Beco do Seminário. 
Bequinho da Escola. 
Beco do Ouro Fino. 
Beco da Cachoeira Grande. 
Beco da Calabrote. 
Beco do Mingu. 
Beco da Vila Rica... 

Conto a estória dos becos, 
dos becos da minha terra, 
suspeitos... mal-afamados 
onde família de conceito não passava. 
“Lugar de gentinha” – diziam, virando a cara. 
De gente do pote d’água. 
De gente de pé no chão. 
Becos de mulher perdida. 
Becos de mulheres da vida. 
Renegadas, confinadas 
na sombra triste do beco. 

Quarto de porta e janela. 
Prostituta anemiada, 
solitária, hética, engalicada, 
tossindo, escarrando sangue 
na umidade suja do beco. 

Becos mal assombrados. 
Becos de assombração... 
Altas horas, mortas horas... 
Capitão-mor – alma penada, 
terror dos soldados, castigado nas armas. 
Capitão-mor, alma penada, 
num cavalo ferrado, 
chispando fogo, 
descendo e subindo o beco, 
comandando o quadrado – feixe de varas... 
Arrastando espada, tinindo esporas... 

Mulher-dama. Mulheres da vida, 
perdidas, 
começavam em boas casas, depois, 
baixavam pra o beco. 
Queriam alegria. Faziam bailaricos. 
– Baile Sifilítico – era ele assim chamado. 
O delegado-chefe de Polícia – brabeza –
dava em cima... 
Mandava sem dó, na peia. 
No dia seguinte, coitadas, 
cabeça raspada a navalha, 
obrigadas a capinar o Largo do Chafariz, 
na frente da Cadeia. 

Becos da minha terra... 
Becos de assombração. 
Românticos, pecaminosos... 
Têm poesia e têm drama. 
O drama da mulher da vida, antiga, 
humilhada, malsinada. 
Meretriz venérea, 
desprezada, mesentérica, exangue. 
Cabeça raspada a navalha, 
castigada a palmatória, 
capinando o largo, 
chorando. Golfando sangue. 

(ÚLTIMO ATO) 
Um irmão vicentino comparece. 
Traz uma entrada grátis do São Pedro de Alcântara. 
Uma passagem de terceira no grande coletivo de São Vicente. 
Uma estação permanente de repouso – no aprazível São Miguel. 
Cai o pano.


Poemas dos becos de Goiás e estórias mais

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Corumbá revisitada




A cidade ainda não acordou. O silêncio do lado de fora é mais espesso. Dobrados sobre os escuros dormem os girassóis. Eu estou atoando nas ruas moda moscas sem tino. O sol ainda vem escorado por bando de andorinhas. Procuro um trilheiro de cabras que antes me levava a um porto de pescadores. Desço pelo trilheiro. Me escorrego nas pedras ainda orvalhadas. Passa por mim uma brisa com asas de garças. As garças estão a descer para as margens do rio. O rio está bufando de cheio. Há bugios ainda nas árvores ribeirinhas. Logo os bugios subirão para as árvores da cidade. O rio está esticado de rãs até os joelhos. Chego no porto dos pescadores. Há canoas embicadas e mulheres destripando peixes. Ao lado os meninos brincam de cangapés. Das pedras ainda não sumiram os orvalhos. Batelões mascateiros balançam nas águas do rio. Procuro meus vestígios nestas areias. Eu bem recebia as pétalas do sol em mim. Queria saber o sonho daquelas garças à margem do rio. Mas não foi possível. Agora não quero saber mais nada, só quero aperfeiçoar o que não sei.

(Memórias Inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros)

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Nossa Lady Filó se despediu hoje. 
Nasceu em casa, nossa casa pequenina de grandes olhos abertos para a serra de Paraty.
Fizemos seu parto, ajudando sua mãe, Maruí (a Maroca), a dar à luz 6 lindos gatinhos: 4 com traços de siamês (algum antepassado ilustre da nossa vira-latinha tricolor?) e 2 cinzas, puxados ao pai, o sr. Cara-de-Cavalo, como apelidamos o mandrião que pulava na nossa varanda pra fazer serenata à Maroca.
Fiquei feliz, pois queria muito uma pratinha, que logo se mostrou arisca, medrosa e temperamental. Essa foi a razão por a escolhermos para ficar em casa, enquanto arranjamos dono para o irmãozinho cinza, que batizamos de Fedegoso. Filomena e Fedegoso, inspiração da canção de Jackson do Pandeiro que ouvíamos na voz do Xangai.
Companheira, veio com a gente na saga de mudança do cantinho regado de mar à metrópole de pedra. 
Em 15 anos de convivência foi se tornando mais mansa, mas sempre desconfiada. Seletiva, dava confiança a poucos. Fomos uns desses poucos contemplados com seu miadinho rouco pedindo atenção. 
Vamos sentir muitas saudades, Filó, Filomena, Filósofa... Amamos você.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Palavras em flor


Você entrou em minha vida, sol radiante em uma tarde de inverno, enchendo a casa de risos, lágrimas, sustos, alegrias. Teimosias engraçadas, coragens admiráveis. 

Já vivemos muitas coisas juntas. Tantos passeios, brincadeiras, conversas, machucados, brigas encerradas com abraços, beijos, carinhos. Histórias, estórias, canções, cirandas que me foram moldando a carapaça de siri e arredondando as arestas, que hoje cantam e dançam com mais harmonia. 

Ao longo desses seis anos, você mudou, mas continua a mesma: aberta à vida, às pessoas, alma cheia de alegria e coragem que me inspira sempre a ver o mundo com olhos de beleza. É a alegria que te acompanha hoje, no seu primeiro dia no primeiro ano. Dia tão ansiado, de aprender a ler, a escrever... Caminhar sozinha pelo mundo das palavras. Que seja um caminho feliz e belo, em que você possa cantar, dançar, pular, sonhar e ora ou outra parar pra contemplar, cheirar e colher as flores que tanto ama. Essas pequenas obras de arte que, desde tão pequena, você distribui, espalhando perfume e vida a todos ao seu redor. Segue na mais pura macieza, meu amor, minha pequena grande Yanni.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

11º Dia de Reis

Pedro, meu querido, há 11 Dias de Reis estávamos eu e seu pai esperando você. Era o fim de uma espera de quase 9 meses, muito intensos. Nosso primeiro filho. Quantas dúvidas, medos, incertezas... Mas quanta alegria, a cada descoberta. A primeira vez que te vi no ultrassom, um serzinho de 3 meses e alguns milímetros que me pareceu uma vírgula (olha o que ser revisora de textos faz com a gente, meu filho!). A primeira movimentação sentida: parecia uma formiguinha fazendo cócegas na minha barriga por dentro - que engraçado, que esquisito, que gostoso! Meu filho.

No dia em que você nasceu, que emoção te ver, tão pequenino mas já tão cheio de vida, cheirando o mundo com os olhos fechados. Mas você logo abriu os olhos, e depois começou a balbuciar os primeiros sons, falar as primeiras palavras, soltar as primeiras gracinhas e birras, engatinhar, andar, correr... E conversar, poetizar, filosofar. Como você viaja no mundo da imaginação! E nos dá a mão para viajarmos juntos...

"Pedro: – Mamãe! Eu chamei o Antonio assim: Antooonio! Antooooonio! – bem alto, mas ele não me viu. Acho que eu tô invisível!
– Eu: Claro, Pedro, você esqueceu que comeu gelatina? Ela te deixou assim, invisível.
– Pedro: – Hããã! Então eu tenho que comer alguma coisa pra ficar desinvisível... (pensativo.)"

Lembra disso, meu filho? Você tinha 4 anos! Pois é, essa e tantas outras belezuras de criança cheia de imaginação e poesia viraram palavra escrita, que transbordou as anotações no papel pra alimentar um blog. E elas fizeram renascer em mim um amor que há muito tempo abandonado: escrever, escrever de verdade, com alma.

"Assistindo à Viagem de Chihiro, o Pedro comenta:
- Puxa, mamãe, esse personagem no início era bonzinho, agora tá fazendo um monte de maldade. E essa bruxa, que parecia tão má, até que não é não...
Depois de um tempo:
- Mamãe, você é do bem?
Eu, na cara de pau:
- Claro, Pedro!
Aí ele retruca:
- Não é não... Às vezes você é do mal... Eu também sou às vezes do mal, às vezes do bem... Todo mundo é assim, né, mamãe?"

Essa foi uma conversa recente, uma das tantas que temos, todos os dias desses últimos 11 anos em que tenho a alegria e a honra de ser sua mãe, e aprender com você a ser mais criança e mais adulta, mais feliz sem medo de ser triste, acertar sem medo de errar (ou errar sem medo de acertar) - ser, enfim, uma pessoa, plena, inteira.

Te amo muito, meu filho! Parabéns, seja sempre você.