domingo, 18 de novembro de 2018

rios são estrias à flor da terra
como são as nossas
à flor da pele
oculta sob o tecido,
algodão ou asfalto

nossas curvas estriadas
não se calçam em retas
canalizadas
transbordam as marginais
abrigo de répteis e anfíbios

guardiões da outra vida
aquela terceira
margem plantada na travessia
entre as matas ciliares

e colhida apenas no instante da modorra
ao sono da razão
quando sonham os lagartos
e surgem os sacis e as iaras

Consciência negra

Devemos a eles e elas: a cor da pele, o remelexo dos quadris, o tom da música, a ginga na luta, o trabalho agrário, a artesania, a resistência poética. A invenção de uma cultura mestiça forjada no caldeirão de povos desenraizados com extrema violência em nome da cobiça e desumanidade de apenas um, colonizador, autodenominado único civilizado. Mas de quanto estupro, assassinato, pilhagem, ignorância e barbárie é feita a "civilidade" europeia, branca?
Em tempos de esquecimento, não esquecemos. Consciência negra sim. Somos todos filhos e filhas da Mama África.
Tela: Maria Auxiliadora, Capoeira, 1970.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

O jardim é um hades
em botão
mil olhos de Cérbero espreitam
olorosos cada quadrante
de verde e luz
E o sol absorto na folha alimenta
a terra reafirmada
do caule à raiz
Cada grão de luz se abriga
no útero da romã que prende
Perséfone em sua morada
noturna
As palavras me andam
causando náuseas
imagens dispersas
vertigem


Elas me levam
      e trazem
ao sabor das marés
seus humores dão o sal
aos meus amores


Não quero mais
palavras
me calem
não
me falem mais


Mas quem sou eu
sem vós
naco de carne
matéria forma
buraco negro
garganta
sem voz

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

na ruína das horas
uma ronda de palavras
embrenha nervuras negras
murmúrio lamacento que serpenteia
na superfície verde das folhas
alumiada à sombra
de pestanas castanhas

castanholas percutem no pulso
herança paterna
será o eco de uma voz
submersa toda a vida?

minha avó de Granada
grão encalacrado no oco
deste baú de nadas
cujo fundo é um espelho em cacos

Parcas fiando as rugas que
em mim tecem
raízes abissais e seus lentos habitantes
Siri é bicho encastelado
parece tanque em miniatura
apenas os pequenos olhos oblíquos
se atrevem a ser lânguidos
enquanto todo o resto de
sua líquida musculatura
se reserva ao claustro


muralha
necessária
entre a flor íntima e
a carne do mar
de que é centelha
no pulso de seus músculos
molusco


latejam marulhos
seus pensares
em forma de canto
o acalantam
no seu castelo
preamar
à espreita
estreita espera
de navegar

O mundo lateja neste nervo exposto
mergulham agulhas nos olhos ouvidos
a pele eriça lacrimejam os poros
abertos à atmosfera
elétricas partículas

partituras
brilham as claves do sol
os pés desavisados à dança
alucinam
meus passos no contratempo
pisam os bicos alheios
as margens transbordam
invadindo as matas
dos meus cílios

e o olho d’água explode sua íris
em mil cores
faz-se a luz em ponte
Quem sou tu?
és nós eu?

Atam-se atos
transversos

Amor é raro narciso
se mira ao espelho do lago
embevecido e mudo

enquanto tudo
são ecos de surdo sentido
dedos de vento acariciam seus cachos

e passam
Penélope não
sou: mulher
espera

serei-à toa
canoa

ela
que sempre
me navega

ver-seja

poesia é percutir
pau e pedra
até que a pele exploda
sem senso

puro sumo som
Paixão
inflamação da amígdala
gera efeitos colaterais contraditórios inevitáveis
alienaçãodesesperoeuforiafebreprostraçãotransbordamentoperdadeapetitepalpitação


noite em claro
visagem de estrela ao meio-dia


dói, exige analgésico
doses extremas de poesia

E numa manhã ensolarada se esvai nuvem. Água sob fervura.
E o convalescente pensa: onde me fui?

Heraclitiana (sqn)

rio serpente
rio touro
rio mar


nas tuas águas mergulha
um eu que não mais se conhece
pois é outro
o escorrer da tua língua na pele


e ao arrepio úmido
após a morte esquecimento
renasço


dissoluta nesse grande
corpo d'água
onde me perco

acho

À beira espero enfim
ouvir a voz que a vida toda
cala em mim
na noite escura úmida
diante de um rio-mar.

Talvez seja vã espera.
Talvez ela seja muda.
Talvez sua seja a voz do mar.

Esse mar que contemplo adiante
está distante
mil léguas em mim.

Como me atravessar?

En sino

o pulso a ecoar
do tambor central
para além da própria
sina

A
pele outra
me transpira
e o vário gesta o

UM

Toque

caminho, danço, giro, pulo
tentando verter em mim
o outro
dentre paredes de carne
e osso


roço a pele que me cala
palavras soltas ou tensas
e o máximo que te tenho
é o espelho de um rosto
tênue


disperso
meu medo
e sigo  errância
escuro-claro
de me ser sem
ter
te

Regurgitando Leminski

Ah, Plutão,
essa mania de escavar o chão

ainda há de nos levar além

Líquido

Já que é a memória da pele
o cheiro o sulco
a contração o grito
o que resiste


Já que a nata nada no raso
na pele
no início


Já que o desejo é libélula
de voo curto e raro
peixe de superfície
sem couro para os abismos
E a despedida breve em catracas de metrô
é o que fica

Sejamos breves rasos
ferozes gozos.
Sem amanhã meu barco não atraca
o olhar turista alisa a paisagem
livre de nomes a guardar

Ah, Orfeu,
Que mania de olhar pra trás
A tarde traz sua morte no arrebol
Anoitece no peito a saudade

Não suspira, não lamenta
Canta o instante

E arde

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Agenda

Habitar a carne do dia
Irrigar as veias da aurora com o rubro sumo do instante

Estender no leito das horas o ouro inaugural da manhã

E atravessar a tarde ao tambor pontuado de sombras
anunciando a noite

domingo, 9 de setembro de 2018

Vide vida

lágrima seca
antes de escorrer
rio na pele


grito expira
antes de vibrar
guitarra na gorja


palavra cala
antes de virar
verso na fala

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Entre

Não tenho medo das minhas entranhas. Estranha entro nas frestas escuras onde se perdem agulhas. Elas fincam fundo sem a gente saber. Fundam espinhos no inconsciente da casa esperando um lampejo de sol para voltar à vida, ao destino a que foram forjadas. Laçar, atar, dar nós. Navegar o rio do tecido.
Não tenho medo das minhas entranhas. Mergulho nelas e nelas me perco, encantada pela estranheza de ser outros em mim.
Meu sangue é meu rio, mergulho nele, perco o senso, o rumo, a proa. Pra canoa me falta o remo, a bússola, a estrela guia. Espero o sol sangrar no poente e sigo demente.