terça-feira, 31 de março de 2020

Diálogo familiar em quarentena

Mãe: - Cadê a lista de compras que a gente fez ontem, Nani?
Nani: - Pedro! Você pegou?
Pedro: - Tô falando? Tudo eu nessa casa! Tudo eu! Aposto que quando apareceu o primeiro caso de corona você berrou: Pedro!
Mãe: - Falei assim: esse moleque! Avisei pra ele não comer aquele morcego!

sexta-feira, 27 de março de 2020

Pedra de rio

"Perdido rio De você, ah meu rio Você é meu rio E eu, pedra de rio"

Essa canção da Luli e da Lucina gravada pelo Ney Matogrosso é muito especial pra mim. Desperta o rio sufocado sob o asfalto dos dias. Me traz memórias de menina cavando a terra da minha ruazinha chorona, que, como eu, vertia água a qualquer cutucada - uma manteiga derretida, dizia minha mãe rs.
O Butantã, contam os antigos, era um brejão. São Paulo é uma terra de rios mutilados pelo trem do progresso que retificou suas curvas, cobriu de lixo seu leito e emudeceu sob o asfalto seu canto. Sem ar, sem sol, sem seus verdes cílios, eles sofrem, como pessoas presas no calabouço.

Eu ouço seu choro subcutâneo e sofro junto. Alguns calados, outros caudalosos, sofremos todos. Mas muitos sonhamos resgatar essas vozes silenciadas. Canto pra que esse sonho ecoe os murmúrios d'água e eles venham à tona. Que tenhamos força, coragem e inspiração pra ajudar nossos perdidos rios voltarem a fluir e fazer a alegria de passarinhos, crianças, plantas, peixes, capivaras.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Niilismo x hedonismo na mesa do almoço

- Ué, Yanni, você não vai chorar e gritar "mamãe, olha o Pedro!"???
[Silêncio]
- Que chato... Eu não consigo mais irritar a Yanni... Minha vida perdeu o sentido.
- Se sua vida perdeu o sentido, então se mata.
- Nossa, olha isso, mamãe, que frieza!
[Silêncio]
- Então é assim, Yanni? Se a vida não tem sentido, a pessoa se mata? Você tá recomendando suicídio?
- Ué, 90% das pessoas fazem isso.
- Tá doida? Se fosse assim, a humanidade tinha se exterminado antes do coronavírus!
- Eu acho...
- Yanni, ninguém vê sentido na vida, só se inventa um. A vida não tem sentido.
- Tem sim.
- Ah é? Então qual é o sentido da vida, Yanni?
- Viver.
[Silêncio]
- Nossa, mamãe, a Yanni virou filósofa.
- É isso: o sentido da vida é viver. Viver, amar... e comer. Principalmente comer.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Sobre um poema (Herberto Helder)

Um poema cresce inseguramente na confusão da carne, sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser. Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência ou os bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol. Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor, os rios, a grande paz exterior das coisas, as folhas dormindo o silêncio, as sementes à beira do vento, - a hora teatral da posse. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade as órbitas, a face amorfa das paredes, a miséria dos minutos, a força sustida das coisas, a redonda e livre harmonia do mundo. - Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério. - E o poema faz-se contra o tempo e a carne.