quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Saco do Mamanguá, Paraty, RJ.
.......
Cidade
Sophia de Mello

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.
.......
Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.
Salvador Dali. Criança geopolítica assistindo ao nascimento do novo homem, 1943.
..............
Overmundo
Murilo Mendes

Os pinheiros assobiam, a tempestade chega:
Os cavalos bebem na mão da tempestade.

Amarro o navio no canto do jardim
E bato à porta do castelo na Espanha.
Soam os tambores do vento.

“Overmundo, Overmundo, que é dos teus oráculos,
Do aparelho de precisão para medir os sonhos,
E da rosa que pega fogo no inimigo?”

Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante,
Que anda, voa, está em toda a parte
E não consegue pousar em ponto algum.
Observai sua armadura de penas
E ouvi seu grito eletrônico.

“Overmundo expirou ao descobrir quem era”,
Anunciam de dentro do castelo na Espanha.
“O tempo é o mesmo desde o princípio da criação”,
Respondem os homens futuros pela minha voz.

Poesia liberdade, 1947.



Derlon Almeida, Recife, Pernambuco. http://www.fotolog.com/derlonalmeida/33247991 / http://www.fotolog.com/derlonalmeida/41025696


Xilograffiti

em veios de carne grava a negra
memória de árvore
rios de linfa, lava
látex

do repente
a palavra
cola em quadra aviolada

(entrebuzinas entrebúzios)

goiva garra goiamu asa carancha
escarafuncha
com dedo de mangue
a pedra de cal




Da dor o sopro
forja em poema
a carne tinta


quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Sophia de Mello

Navio Naufragado

Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes.

In Obra poética III, 1991


***

A anémona dos dias

Aquele que profanou o mar
E que traiu o arco azul do tempo
Falou da sua vitória
Disse que tinha ultrapassado a lei
Falou da sua liberdade
Falou de si próprio como de um Messias
Porém eu vi no chão suja e calcada
A transparente anêmona dos dias.


In No tempo dividido e Mar novo, 1985.

***


As amoras


O meu país sabe as amoras bravas

no verão.

Ninguém ignora que não é grande, nem inteligente, nem elegante o meu país,

mas tem esta voz doce de quem acorda cedo para cantar nas silvas.

Raramente falei do meu país, talvez

nem goste dele, mas quando um amigo

me traz amoras bravas

os seus muros parecem-me brancos,

reparo que também no meu país o céu é azul.

***

Cantar

Tão longo caminho

E todas as portas

Tão longo o caminho

Sua sombra errante

Sob o sol a pino

A água de exílio

Por estradas brancas

Quanto Passo andado

País ocupado

Num quarto fechado

As portas se fecham

Fecham-se janelas

Os gestos se escondem

Ninguém lhe responde

Solidão vindima

E não querem vê-lo

Encontra silêncio

Que em sombra tornados

Naquela cidade

Quanto passo andado

Encontrou fechadas

Como vai sozinho

Desenha as paredes

Sob as luas verdes

É brilhante e fria

Ou por negras ruas

Por amor da terra

Onde o medo impera

Os olhos se fecham

As bocas se calam

Quando ele pergunta

Só insultos colhe

O rosto lhe viram

Seu longo combate

Silêncio daqueles

Em monstros se tornam

Tão poucos os homens

***


São Tiago de Compostela

Assim pudesse o poema

Como a pedra esculpida

Do pórtico antigo

Ter em si própria a mesma

Compacta alegria

Cereal claridade

Ante o voo da ave

Do espírito que ergue

Os pilares da nave


In Ilhas, Obra Poética III.

Biografia


Tive amigos que morriam,

amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-te na luz, no mar, no vento.

In No tempo dividido e Mar novo, 1985.

Guichê de perdidos (meus poemas)

Beira


A escadaria
que a enxurrada
lava
nada tem
de Bonfim

A acre urina e os gritos
ambulantes
ensinam a nova
memória

Ladeira

Sem rumo

sem sina
esquecem-se
as bandeiras ao largo
orgulhoso

No dorso adormecido
a menina memória
aos passos apressados
recolhe sua história

***

Estética

Renego
em ódio que remorde a massa amorfa
substantivos-peitos
adjetivos-bundas
vírgulas-curvas-de-academia
rimas de estímulo ao joelho que mais alto se alevanta
ritmos batestaquestep

No vão espelho de mim
o olho aval avesso
em nervos expostos
ossos músculos tesos
tíbia nua tarso metatarso
retorcido
na métrica quebrada
desejo que morre
na linha que não
decola

desova
no beco
guichê de perdidos
não achados

***

Bebop

Martelo nos ouvidos
anfíbia, estranha
entranha?

Na cidade que não dorme
mergulha em
poço

mas
vão esforço
da miopia
é a lua que escapa e
esbarra
no asfalto liso
– livre de crespas rebeldias –
da Paulista refeita

concreto
e nata


***

a música quente
ferve a chaleira
esquecida ao canto

Entanto
na entrelinha azul da
cantiga
encontro a sílaba
perdida
entredentes tímida
o assimétrico sibilo
da plateia ao embate
do piano

esquecida ao canto
chia a chaleira seca
rasca a garganta

***

Telemarketing

Menina obediente
atende o telefone
aos domingos.

Domingo
dormindo nas dormentes o resto
do sábado
atira-se na ponte do
Pinheiros

e o escândalo da segunda:
tão novo
o carro.

a horas
atende o telefone
que não toca.


Teatro municipal

à chuva fina fria
desejo vento e fonte
claro sol em sombra verde
canto marlui mirante no caos

ao largo viaduto
do chá marulhos de um
Anhanga-
baú submerso
sombras de outrora cores
giram difusas
madames em xales de seda e ócio
derretem à garoa já tempestade
águas represadas
invadem em multidão a cidade que não
pára

classificados
no paredão pichado
procuram pessoa sem
experiência
de quê? ao lado
os olhos oblíquos sobre a flauta
arrecadam sons andinos à esquiva
esquina do municipal
e o som que me segue à praça da
república sucumbe a ofertas
de melodia

meio-dia

***


Moto contínuo

Um homem levanta um braço
seguro à barra que abranda
o solavanco diário
a pancada suave e seca
a cordial e civilizada forma com que as Horas
esquartejam o dia
o ano
a vida

Salvo à luz que esquadrinha
a epiderme e imprime
rugas à face imóvel
o homem entrega-se ao motor que o embala no grande sonho

***

Centenário

Shigeo de Hiroshima
veio pra Pompeia
lavrar café e fazer de feijão
amai, manju, sete
filhos, 16 netos

Shigeo monge zen bebia
saquê não, cachaça,
pinga em São Paulo,
birita para os íntimos

e gostava de carne-seca
e amendoim bem torrado

No Japão sonhava ser
antropólogo
Do Brasil que o fez
doceiro dizia:
melhor país do mundo
e sentia a brisa de café
que amorna o ar e o
hálito da manhã

***


Chafariz

Porém eu vi no chão suja e calcada
A transparente anêmona dos dias.
Sophia de Mello

São Paulo devia ter
mar São Paulo devia
canta iara bela
à beira da fonte
da sé que a fé
refrata

desbaralhando breus caminhos
com o pente dos dedos longos negros
unhas feitas a dente
a menina se mira musgo e mijo
nas esmeraldas

que em canto doce
odoyá

arredondam as retas
sem beirais
da gótica catedral

***

Alfândega

O menino que Jesus comprou
e levou de avião com promessas
altas
brilhantes

dorme
à espera no âmago
estômago
em pó

branquinho
Poemas aos homens do nosso tempo
Hilda Hilst

Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.


* * *

Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua

Aquietá-los.

Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.

* * *

Bombas limpas, disseram? E tu sorris
E eu também. E já nos vemos mortos
Um verniz sobre o corpo, limpos, estáticos,
Mais mortos do que limpos, exato
Nosso corpo de vidro, rígido
À mercê dos teus atos, homem político.
Bombas limpas sobre a carne antiga.
Vitral esplendente e agudo sobre a tarde.
E nós na tarde repensamos mudos
A limpeza fatal sobre nossas cabeças
E tua sábia eloqüência, homens-hienas

Dirigentes do mundo.


* * *

Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.


* * *

Ávidos de ter, homens e mulheres caminham pelas ruas.
As amigas sonâmbulas, invadidas de um novo a mais querer,
Se debruçam banais, sobre as vitrines curvas.
Uma pergunta brusca, enquanto tu caminhas pelas ruas.
Te pergunto: E a entranha?
De ti mesma, de um poder que te foi dado
Alguma coisa clara se fez? Ou porque tudo se perdeu
É que procuras nas vitrines curvas, tu mesma,
Possuída de sonho, tu mesma infinita, maga,
Tua aventura de ser, tão esquecida?
Por que não tentas esse poço de dentro
O incomensurável, um passeio veemente pela vida?

Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada
De ter teu rosto verdadeiro, desejarias nada.


* * *

Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.

Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto

Não cabe no meu canto.

Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974) - Poemas aos Homens do nosso Tempo.
In: Poesia: 1959 - 1979. São Paulo: Quíron; [Brasília]: INL, 1980.
A defesa do poeta
Natália Correia


Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em criança que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e Sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
em que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.

Antologia da poesia portuguesa contemporânea. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.