sexta-feira, 27 de novembro de 2009

- A Jajá comeu todo o pão. Que comilenta!

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Torneirinha

– Pedro, vai fazer xixi antes de deitar!
– Não tô conseguindo... Acho que meu peru tá entupido.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Domingo chuvoso, a esperada piscina mixou. O Pedroca ficou bravo:
– Eu falei tanto pro "seu" Pedro fazer sol, mas olha aí, mamãe...
– É, Pedro, o seu xará tá de mau humor.
Pra mudar a rotina, resolvi fazer pão. E chamei meu ajudante número 1 pra participar da lambança. Com direito a mexer os ovos, colocar farinha e botar a mão na massa, literalmente.
– Agora, a gente tem que dar uma surra no pão, Pedro. – E dá-lhe sova. – Cresce, seu preguiçoso, cresce, seu sem vergonha!!
– Cresce, seu safadão!! – risos. E dá-lhe soco.
– Agora ele precisa descansar, Pedro. Depois a gente coloca o recheio. Gostou?
– Gostei! – sorriso na cara enfarinhada – Ser padeiro é melhor que ser médico.

Pedro Pan

– Mamãe, eu quero ir pro céu.
– Pra que, Pedro?
– Pra ver a lua, o dragão, o "seu" Pedro...
– Então você quer ser astronauta.
– Não, mamãe, eu não quero ser o Buzz Ligthyear, eu quero ser o Peter Pan! Assim vou voar com o pozinho mágico pra Terra do Nunca. Lá é legal!

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Manuelices


Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca

b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer

c) Por que é que as borboletas de tarja vermelha têm devoção por túmulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação

e) Que um rio que flui entre dois jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos

f) Como pegar na voz de um peixe

g) Qual o lado da noite que emudece primeiro

etc

etc

etc

Desaprender oito horas por dia ensina princípios

Manoel de Barros. In: O livro das ignorãnças.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Saudade

– Papai, eu queria falar com o Paulinho.

– Ah, Pedro, o Paulinho não tá aqui. Ele foi pro céu.

– Então eu vou gritar bem alto: Ô Pauliiiinho!!!

sábado, 8 de agosto de 2009

– Mamãe, eu sou muito pequeno, não sei nada ainda...

– Você, Pedro? Você é muito esperto, já sabe um monte de coisas!

– Não, eu não sei falar inglês, não sei estalar o dedo...

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– Eu tô andando que nem você, mamãe!

– Como, devagarzinho?

– Não, mamãe... Assim, que nem pato!

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O que você vai ser quando crescer?

– Mamãe, já sei! Quando eu crescer eu vou ser conzinheiro!

domingo, 21 de junho de 2009

Ingornizando

-Mamãe, agora eu vou ingornizar as coisas.

- O que, Pedro?

- É, eu vou ingornizar: você sempre vai me dar banho na banheira, e o papai, no chuveiro, tá?

terça-feira, 2 de junho de 2009

Dadamascar

Estou vendo um episódio do House. No final, toca What a wonderfull world.

Vem o Pedroca: – Mamãe, quem canta essa música?

Eu: – Ahhn... é um moço que se chamava Louis, Pedro.

Pedro, com cara de sabido: – Nããããão, mamãe... Você esqueceu?

Eu, depois de alguns segundos: – Ah, é mesmo! Essa música é do...

Pedro: – Dadamascar!!!

Eu: – Isso. Mas quem canta essa música do Madagascar é o Louis.

Pedroca: – E o Lui gosta do Dadagascar?

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Mais pedroquices (versão do pai)


Psiu... É segredo

– Mas não conta pra ninguém que eu tô usando cinto. Eu não quero ser grande ainda. (Ao estrear seu primeiro cinto.)

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Ihhh...

– Papai, olha o estádio do meu tênis! (Após ter pisado na lama.)

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Yara

Achei este texto lindo no blog http://claricelispector.blogspot.com, que nos dá o prazer indescritível de submergir nas águas de Clarice.

A perigosa Yara

Ao cair de todas as tardes, a Yara, que mora no fundo das águas, surge de dentro delas, magnífica. Com flores aquáticas enfeita então os cabelos negros e brinca com os peixinhos de escapole-escapole. Mas no mês de maio ela aparece ao pôr-do-sol para arranjar noivo.

As mães se preocupam com seus filhos varões, sabedoras de que a Yara quer noivos. Mas para os filhos, Yara é a tentação da aventura, pois há rapazes que gostam de perigo.

À medida que a Yara canta, mais inquietos e atraídos ficam os moços, que, no entanto, não ousam se arriscar.

Sim, mas houve um dia um Tapuia sonhador e arrojado. Pensativamente estava pescando e esqueceu-se de que o dia estava acabando e que as águas já se amansavam. Foi quando pensou: acho que estou tendo uma ilusão. Porque a morena Yara, de olhos pretos e faiscantes, erguera-se das águas. O Tapuia teve o medo que todo o mundo tem das sereias arriscadas — largou a canoa e correu a abrigar-se na taba. Mas de que adiantava fugir, se o feitiço da Flor das Águas já o enovelara todo? Lembrava-se do fascínio de seu cantarolar e sofria de saudade. A mãe do Tapuia adivinhara o que acontecia com o filho: examinava-o e via nos seus olhos a marca da fingida sereia.

Enquanto isso, Yara, confiante no seu encanto, esperava que o índio tivesse coragem de casar-se com ela. Pois — ainda nesse mês de florido e perfumado maio — o índio fugiu da taba e de seu povo, entrou de canoa no rio. E ficou esperando de coração trêmulo.

Então — então a Yara veio vindo devagar, devagar, abriu os lábios úmidos e cantou suave a sua vitória, pois já sabia que arrastaria o Tapuia para o fundo do rio.

Os dois mergulharam e advinha-se que houve festa no profundo das águas. As águas estavam de superfície tranqüila como se nada tivesse acontecido. De tardinha, aparecia a morena das águas a se enfeitar com rosas e jasmins. Porque um só noivo, ao que parece, não lhe bastava.

Esta história não admite brincadeiras. Que se cuidem certos homens.

In: Clarice Lispector. Como nasceram as estrelas – Doze lendas brasileiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Literatura – pra quê?

Recebi este texto por email da minha cunhadinha e não resisti. Vale muito a pena ler.

Ambulantes, pedintes e moradores de rua não esperam só por dinheiro dos motoristas parados no sinal vermelho. Sem pagar pra ver, eu vi

Rodrigo Ratier (rodrigo.ratier@abril.com.br) CAMINHO LIVRE

A cada livro oferecido em vez de esmola, um leitor descoberto.
"Dinheiro eu não tenho, mas estou aqui com uma caixa cheia de livros. Quer um?" Repeti essa oferta a pedintes, artistas circenses e vendedores ambulantes, pessoas de todas as idades que fazem dos congestionamentos da cidade de São Paulo o cenário de seu ganha-pão. A ideia surgiu de uma combinação com os colegas de Nova Escola: em vez de dinheiro, eu ofereceria um livro a quem me abordasse - e conferiria as reações.


Para começar, acomodei 45 obras variadas - do clássico Auto da Barca do Inferno, escrito por Gil Vicente, ao infantil divertidíssimo Divina Albertina, da contemporânea Christine Davenier - em uma caixa de papelão no banco do carona de meu Palio preto. Tudo pronto, hora de rodar. Em 13 oferecimentos, nenhuma recusa. E houve gente que pediu mais. Nas ruas, tem de tudo. Diferentemente do que se pode pensar, a maioria dessas pessoas tem, sim, alguma formação escolar. Uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, realizada só com moradores de rua e divulgada em 2008, revelou que apenas 15% nunca estudaram. Como 74% afirmam ter sido alfabetizados, não é exagero dizer que as vias públicas são um terreno fértil para a leitura. Notei até certa familiaridade com o tema. No primeiro dia, num cruzamento do Itaim, um bairro nobre, encontrei Vitor*, 20 anos, vendedor de balas. Assim que comecei a falar, ele projetou a cabeça para dentro do veículo e examinou o acervo:

- Tem aí algum do Sidney Sheldon? Era o que eu mais curtia quando estava na cadeia. Foi lá que aprendi a ler.

Na ausência do célebre novelista americano, o critério de seleção se tornou mais simples. Vitor pegou o exemplar mais grosso da caixa e aproveitou para escolher outro - "Esse do castelo, que deve ser de mistério" - para presentear a mulher que o esperava na calçada.

Aos poucos, fui percebendo que o público mais crítico era formado por jovens, como Micaela*, 15 anos. Ela é parte do contingente de 2 mil ambulantes que batem ponto nos semáforos da cidade, de acordo com números da prefeitura de São Paulo. Num domingo, enfrentava com paçocas a 1 real uma concorrência que apinhava todos os cruzamentos da avenida Tiradentes, no centro. Fiz a pergunta de sempre. E ela respondeu:

- Hum, depende do livro. Tem algum de literatura?, provocou, antes de se decidir por Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

As crianças faziam festa (um dado vergonhoso: segundo a Prefeitura, ainda existem 1,8 mil delas nas ruas de São Paulo). Por estarem sempre acompanhadas, minha coleção diminuía a cada um desses encontros do acaso. Érico*, 9 anos, chegou com ar desconfiado pelo lado do passageiro:

- Sabe ler?, perguntei.

- Não..., disse ele, enquanto olhava a caixa. Mas, já prevendo o que poderia ganhar, reformulou a resposta:

- Sim. Sei, sim.

- Em que ano você está?

- Na 4ª B. Tio, você pode dar um para mim e outros para meus amigos?, indagou, apontando para um menino e uma menina, que já se aproximavam.
Mas o problema, como canta Paulinho da Viola, é que o sinal ia abrir. O motorista do carro da frente, indiferente à corrida desenfreada do trio, arrancou pela avenida Brasil, levando embora a mercadoria pendurada no retrovisor.


Se no momento das entregas que eu realizava se misturavam humor, drama, aventura e certo suspense, observar a reação das pessoas depois de presenteadas era como reler um livro que fica mais saboroso a cada leitura. Esquina após esquina, o enredo se repetia: enquanto eu esperava o sinal abrir, adultos e crianças, sentados no meio-fio, folheavam páginas. Pareciam se esquecer dos produtos, dos malabares, do dinheiro...

- Ganhar um livro é sempre bem-vindo. A literatura é maravilhosa, explicou, com sensibilidade, um vendedor de raquetes que dão choques em insetos.

Quase chegando ao fim da jornada literária, conheci Maria*. Carregava a pequena Vitória*, 1 ano recém-completado, e cobiçava alguns trocados num canteiro da Zona Norte da cidade. Ganhou um livro infantil e agradeceu. Avancei dois quarteirões e fiz o retorno. Então, a vi novamente. Ela lia para a menininha no colo. Espremi os olhos para tentar ver seu semblante pelo retrovisor. Acho que sorria.

* os nomes foram trocados para preservar os personagens

Déborah Barbosa

"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada." (Clarice Lispector)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Obra-prima

Ninguém como um filho – para nos pôr de cabelo branco, em pé, ou mesmo desprovida dele. Mas também ninguém como um filho para nos tornar os melhores pintores, arquitetos, cantores...
Quase meia-noite de domingo, prestes a virar abóbora, esperando ansiosamente o bolo de laranja amornar para virá-lo no prato e finalmente o Pedro comer um pedaço e dormir. Eis o cenário, imagine o meu humor. rrrrrr

Finalmente, bolo morno, bordas descoladas etc. etc., viro o bolo e... Não, o bolo não quebrou, ufa! Ficou inteirinho, bolo de mãe, enfim...


O Pedroca, que até então não parava de me perguntar se já podia comer um pedaço, parou, extático. Sem exagero, com x (ê, nossa língua!): – Que lindo, mamãe! Nossa, ficou certinho! E olha, ainda tem um redondinho no meio... (e colocava o dedinho no círculo oco do bolo, encantado). Como você conseguiu fazer isso???

Quando ia cortar o bolo, lá veio ele de novo: – Não, mamãe! Vai estragar!

Enquanto relembro mais essa doçura do meu Pedroca, a pequena Yanni brinca de gol com o meu umbigo. Tem coisa melhor para encarar o trânsito das 19 horas em Sampa?

terça-feira, 5 de maio de 2009

Istérios...
















Mamãe, tem dois gatos muito isteriosos lá na cozinha... Que meeedo!

sexta-feira, 27 de março de 2009

Novas do Pedroca

Abril 2009
A mãe tem a brilhante ideia de presenteá-lo com um cubo mágico, imaginando que, por ser dos personagens do ursinho Puff, seria mais fácil montá-lo. Depois de alguns segundos desmontando-o, pensa: –Pronto, vou montar rapidinho. –Hehehe, e aí? Lá vem o Pedro:
– Conseguiu, mamãe?
Bom, melhor não dizer...
– Não, Pedro, agora é com você!
Depois de alguns minutos, um pouco contrariado:
– Mamãe, não tô conseguindo não...
– Ah, Pedro, tem que tentar mais! Por isso chama quebra-cabeça.
Mais alguns minutos:
– Mamãe, cansei de quebrar a minha cabeça. Agora tenho que desquebrar...

.......................

– Mamãe, você sabe o que é serrealizar?
– O quê, Pedro?
– É, serrealizar! É que nem quando eu tô pintando com tinta de verdade. Eu serrealizo. E quando a gente vai pra praia também! A gente não serrealiza?

......................

– Hoje na escolinha eu assisti a Branca de Neve!
– Nossa, verdade? Você ficou com medo da bruxa?
– Fiquei sim, eu não tava preparado pra ver aquela bruxa... Mas eu tava preparado pra ver ela se ferrar!


Março 2009
Pedro: – Mamãe! Eu chamei o Antonio assim: Antooonio! Antooooonio! – bem alto, mas ele não me viu. Acho que eu tô invisível! – Mãe: Claro, Pedro, você esqueceu que comeu gelatina? Ela te deixou assim, invisível. – Pedro: – Hããã! Então eu tenho que comer alguma coisa pra ficar desinvisível... (pensativo.)

Mãe: – Hoje eu sonhei com a sua irmãzinha. Ela era tão bonitinha, bochechuda. Ficava dando risada e balançando as mãozinhas... (Pedro quieto.) E eu sonhei que você tava voando, com a capa do Batman! – Pedro, assanhado: É mesmo, mamãe???

sexta-feira, 6 de março de 2009

Franz Krajcberg. Escultura de chão, cipó e raiz, 1968.

O cacto
Manuel Bandeira

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bonde, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas [privou a cidade de iluminação e energia:

– Era belo, áspero, intratável.

Entre as estações



Não creio nos espectros que passam pelo meu. Hão de ser lenda, mito, platônicas miragens. Os passos, sim, são reais, ouço-os estalar sobre o asfalto, ruído surdo absorto em buzinas e gritos descarnados vendendo ficção. Vida, a prazo, a cada passo.
Outros passos me passam, ultrapassam, estacionam ao meu lado. Sons agudos de saltos sobre o piso frio, séculos marmóreos condensados em instantes de vidro e labor industrial. Alguns soam aveludados como andar de gato à espreita. Seguem-nos um cheiro redondo de café.
Meus passos me levam ao vagão e num relance entre as estações os olhos invadem meu reflexo na janela escurecida. Quem é o espectro que me fita? O breve instante, devorado pela velocidade, não permite a revelação. A cada chegada e partida novos olhares se revelam na noite iluminada das janelas. E passam. Ao redor resquícios de conversas ecoam vozes já mortas, vindas de bocas que não se abrem sob olhos que não vêem.
Apenas os passos são reais. Não há nada a levar, somente o som que não cessa. Levam-me à escada rolante e o clarão da rua ofusca os olhos repletos de luz artificial. De ouvido busco a trilha das antigas pisadas. Mas a chuva lavou os sons e os rastros. Nas poças chapinham pés de pato que perderam o senso da migração. Só lhes resta o pisar desengonçado de quem não nasceu para o chão.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009


Depois de uma viagem familiar de repouso e diversão, A jangada de pedra tem sido um alento na volta à rotina da cidade de pedra, aço, fumaça e trânsito. Viajar com cinco recém-tornados aventureiros, em uma carroça movida a Dois Cavalos, acompanhados de um cão infernal, pelas brenhas de uma (pen)ínsula ibérica liberta de suas milenares costelas pirineicas, tem dado um sabor ironicamente inusitado às minhas viagens casa-trabalho, trabalho-casa.

Sempre amei livros de viagem, A viagens de Gulliver, Viajando com Charlie, as aventuras da Emília e companhia à Grécia antiga... Queria ser caminhoneira, hehehe, ou andarilha (cientista maluca nas horas vagas), e devorava as aventuras literárias que me faziam sentir o vento batido no rosto.

Função da literatura nos tornar suportável a banalidade do dia a dia? Não sei. Ao contrário, despertar-nos a percepção disso? Sei não.

"Li uma vez não sei onde que a galáxia a que pertence o nosso sistema solar se dirige para uma constelação de que agora também não me lembra o nome, e essa constelação dirige-se, por sua vez, para um certo ponto do espaço (...), ora reparem, nós aqui vamos andando sobre a península, a península navega sobre o mar, o mar roda com a terra a que pertence, e a terra vai rodando sobre si mesma, e, enquanto roda sobre si mesma, roda também à volta do sol, e o sol também gira sobre si mesmo, e tudo isso junto vai na direção da tal constelação, então o que eu pergunto, se não somos o extremo menor desta cadeia de movimentos dentro de movimentos, o que eu gostaria de saber é o que é que se move dentro de nós e para onde vai, não, não me refiro a lombrigas, micróbios e bactérias, esses vivos que habitam em nós, falo doutra coisa, duma coisa que se mova e que talvez nos mova, como se movem e nos movem constelação, galáxia, sistema solar, sol, terra, mar, península, Dois Cavalos, que nome finalmente tem o que a tudo move, de uma extremidade da cadeia à outra, ou cadeia não existirá e o universo talvez seja um anel, simultaneamente tão delgado que parece só nós, e o que em nós cabe, cabemos nele, e tão grosso que possa conter a máxima dimensão do universo que ele próprio é, que nome tem o que a seguir a nós vem".

Questões de Pedro Orce em A jangada de pedra.


"... enquanto a fogueira dança no ar parado, olham-na pensativamente os viajantes, estendem para ela as mãos como se as impusessem ou ao fogo se rendessem, há um velho mistério nesta relação entre nós e o lume, mesmo com o céu por cima, é como se estivéssemos, ele e nós, no interior da caverna original, gruta ou matriz. (...) não há pressa, a hora é pacífica, quase doce, o luzeiro das chamas perpassa nos rostos tisnados pelo ar livre, têm a cor que neles dá o sol quando nasce, o sol é doutra natureza e está vivo, não morto como a lua, essa é a diferença."

José Saramago. A jangada de pedra.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Wladimir Kush





















[...] cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem, e os olhos veem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedra, e as altas proas, ainda que sejam de ilusão.


José Saramago. A jangada de pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

FRASES DO PEDROCA


Jan/2008 - João babudo, a sua barba fugiu? (quando o tio raspou a temida barba)

Jan/2008 - Ah, assim não dá! A sua bunda parece o elefante! (Mãe: Buáááá, eu tô gorda!) Não, mamãe, é a sua bunda que é de elefante!

Jan/2008 - Mamãe, eu sou forte, sou o homaranha. (Mãe: Homaranha, Pedro? - risos) É, sou o HOMARANHA! Eu salvei as garotas!!! (Mãe: Que garotas?! risos) A Pandola e a Cléu! (cachorra e gata)

Fev/2008 - Eu tô feio, não tô verde... Quero ficar bonito que nem o Shrek, não feiorroroso que nem o Príncipe Encantado! (choroso)

Fev/2008 - Pedro, você quer um irmãozinho? - Não! - Ah, mas vai ser legal ter um irmãozinho pra brincar com você! - E como ele vai chamar? - Que tal Paulo? - Não. - E André? - Não.- Caio. - Não. - Que nome você quer então? - Aaaah... Cocô!

18/mar/2008 - A Pandora precisa de um homem siculento. (depois que a cachorra lhe deu umas lambidas na perna)

19/mar/2008 -Pedim, vem me vê! (a prima, Paloma, ao telefone). - Agora não dá, tô muito trabalhando! (Pedro, preocupado com as tarefas domésticas)

31/mar/2008 - Olha, Pedro, esse tesouro que o Pirata mandou te dar! (mãe querendo enrolar o Pedro com umas bugigangas brilhosas) - E polacaso o Pirata virou Papai Noel? (ar desconfiado)

abril/2008 - Deve ser legal ser um cachorro. Bem felpudo.

maio/2008 - Mamãe, a professora fez um presente pra você, mas é surpresa! (Mãe: Ehhhh! Que legal, que legal!) - Mas é surpresa, tá? Deixa eu pegar lá na mochila. (Mãe: Não, Pedro, você só vai me dar no domingo!) - Ah, tá bom. Só na semana-feira.

Junho/2008 - Mãe: Pedro, hoje é dia dos namorados! Pedro (todo feliz): É??! Mãe: Quem é a sua namorada? Pedro: O papai! Mãe: Não, é a Pandora! Pedro, bravo: Não, é o papai e a mamãe! –Depois de uns minutos, com a boca cheia de bala: Sabia que a framboesa é namorada do morango?

Julho/2008 - Mamãe, o papai largou a gente aqui, que nem a mãe do João e Malia, né? (o pai tinha acordado antes) Quando você era pequena você era a Malia, eu quando era grandão era o João!

- Mãe: Pedro, que você tá fazendo aí parado? - Pedro: Eu tô pensando na vida.

- Olha o Mickey pintando, mamãe! Que nem eu, que sou pintadeiro.

- Pedro com um desenho do Mickey, Donald e Pateta na mão, e ao lado do Mickey o número 3: Olha, mamãe, o Mickey tem tlês anos, que nem eu! O Donald tem 4, que nem o Manolo, e o Pateta, 6, é o papai! A mãe, se sentindo fora da festa: E eu??? Pedro: Ah, aqui só tem os meninos... – Depois de um tempinho, todo feliz, com o desenho de outra personagem: Olha aqui você, mamãe! E a mãe: Ah, que legal, quantos anos eu tenho? Pedro: Hããããã... Tem TPM anos! (Não é que a mãe estava de TPM?)

Agosto/2008 - Pedroca, acordando: Meu Tigre dormiu comigo! (mãe: Não, Pedro, é o Leão!) Não, é tigre, cadê a peruca dele?

- Olha, a abelhinha tá pelotando o melecópetero!


ENGRAÇADINHAS

Bisculpa, por favoi.

Malucas, Malucas! (chamando o primo Lucas)

Deeeu do céu!!! Deeeeu do céu!!! (frase recorrente com 1 ano, chorando muito porque não queria lavar a cabeça ou entrar no mar)

POR QUÊ?

-Mamãe, por que a moça me deu este coelhinho? - Porque ela gosta de você, Pedro. - Por que ela gosta de mim? -Ah, por que você é bonitinho, Pedro... - Por que eu sou bonitinho? - Aaaah... porque você é lindo! - Por que eu sou lindo? - Chega, Pedro! - Por que chega, mamãe?...

- Mamãe, por que o nosso cabelo é sempre quente? (agoniado com o calor)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Saco do Mamanguá, Paraty, RJ.
.......
Cidade
Sophia de Mello

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.
.......
Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.
Salvador Dali. Criança geopolítica assistindo ao nascimento do novo homem, 1943.
..............
Overmundo
Murilo Mendes

Os pinheiros assobiam, a tempestade chega:
Os cavalos bebem na mão da tempestade.

Amarro o navio no canto do jardim
E bato à porta do castelo na Espanha.
Soam os tambores do vento.

“Overmundo, Overmundo, que é dos teus oráculos,
Do aparelho de precisão para medir os sonhos,
E da rosa que pega fogo no inimigo?”

Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante,
Que anda, voa, está em toda a parte
E não consegue pousar em ponto algum.
Observai sua armadura de penas
E ouvi seu grito eletrônico.

“Overmundo expirou ao descobrir quem era”,
Anunciam de dentro do castelo na Espanha.
“O tempo é o mesmo desde o princípio da criação”,
Respondem os homens futuros pela minha voz.

Poesia liberdade, 1947.



Derlon Almeida, Recife, Pernambuco. http://www.fotolog.com/derlonalmeida/33247991 / http://www.fotolog.com/derlonalmeida/41025696


Xilograffiti

em veios de carne grava a negra
memória de árvore
rios de linfa, lava
látex

do repente
a palavra
cola em quadra aviolada

(entrebuzinas entrebúzios)

goiva garra goiamu asa carancha
escarafuncha
com dedo de mangue
a pedra de cal




Da dor o sopro
forja em poema
a carne tinta


quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Sophia de Mello

Navio Naufragado

Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes.

In Obra poética III, 1991


***

A anémona dos dias

Aquele que profanou o mar
E que traiu o arco azul do tempo
Falou da sua vitória
Disse que tinha ultrapassado a lei
Falou da sua liberdade
Falou de si próprio como de um Messias
Porém eu vi no chão suja e calcada
A transparente anêmona dos dias.


In No tempo dividido e Mar novo, 1985.

***


As amoras


O meu país sabe as amoras bravas

no verão.

Ninguém ignora que não é grande, nem inteligente, nem elegante o meu país,

mas tem esta voz doce de quem acorda cedo para cantar nas silvas.

Raramente falei do meu país, talvez

nem goste dele, mas quando um amigo

me traz amoras bravas

os seus muros parecem-me brancos,

reparo que também no meu país o céu é azul.

***

Cantar

Tão longo caminho

E todas as portas

Tão longo o caminho

Sua sombra errante

Sob o sol a pino

A água de exílio

Por estradas brancas

Quanto Passo andado

País ocupado

Num quarto fechado

As portas se fecham

Fecham-se janelas

Os gestos se escondem

Ninguém lhe responde

Solidão vindima

E não querem vê-lo

Encontra silêncio

Que em sombra tornados

Naquela cidade

Quanto passo andado

Encontrou fechadas

Como vai sozinho

Desenha as paredes

Sob as luas verdes

É brilhante e fria

Ou por negras ruas

Por amor da terra

Onde o medo impera

Os olhos se fecham

As bocas se calam

Quando ele pergunta

Só insultos colhe

O rosto lhe viram

Seu longo combate

Silêncio daqueles

Em monstros se tornam

Tão poucos os homens

***


São Tiago de Compostela

Assim pudesse o poema

Como a pedra esculpida

Do pórtico antigo

Ter em si própria a mesma

Compacta alegria

Cereal claridade

Ante o voo da ave

Do espírito que ergue

Os pilares da nave


In Ilhas, Obra Poética III.

Biografia


Tive amigos que morriam,

amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-te na luz, no mar, no vento.

In No tempo dividido e Mar novo, 1985.

Guichê de perdidos (meus poemas)

Beira


A escadaria
que a enxurrada
lava
nada tem
de Bonfim

A acre urina e os gritos
ambulantes
ensinam a nova
memória

Ladeira

Sem rumo

sem sina
esquecem-se
as bandeiras ao largo
orgulhoso

No dorso adormecido
a menina memória
aos passos apressados
recolhe sua história

***

Estética

Renego
em ódio que remorde a massa amorfa
substantivos-peitos
adjetivos-bundas
vírgulas-curvas-de-academia
rimas de estímulo ao joelho que mais alto se alevanta
ritmos batestaquestep

No vão espelho de mim
o olho aval avesso
em nervos expostos
ossos músculos tesos
tíbia nua tarso metatarso
retorcido
na métrica quebrada
desejo que morre
na linha que não
decola

desova
no beco
guichê de perdidos
não achados

***

Bebop

Martelo nos ouvidos
anfíbia, estranha
entranha?

Na cidade que não dorme
mergulha em
poço

mas
vão esforço
da miopia
é a lua que escapa e
esbarra
no asfalto liso
– livre de crespas rebeldias –
da Paulista refeita

concreto
e nata


***

a música quente
ferve a chaleira
esquecida ao canto

Entanto
na entrelinha azul da
cantiga
encontro a sílaba
perdida
entredentes tímida
o assimétrico sibilo
da plateia ao embate
do piano

esquecida ao canto
chia a chaleira seca
rasca a garganta

***

Telemarketing

Menina obediente
atende o telefone
aos domingos.

Domingo
dormindo nas dormentes o resto
do sábado
atira-se na ponte do
Pinheiros

e o escândalo da segunda:
tão novo
o carro.

a horas
atende o telefone
que não toca.


Teatro municipal

à chuva fina fria
desejo vento e fonte
claro sol em sombra verde
canto marlui mirante no caos

ao largo viaduto
do chá marulhos de um
Anhanga-
baú submerso
sombras de outrora cores
giram difusas
madames em xales de seda e ócio
derretem à garoa já tempestade
águas represadas
invadem em multidão a cidade que não
pára

classificados
no paredão pichado
procuram pessoa sem
experiência
de quê? ao lado
os olhos oblíquos sobre a flauta
arrecadam sons andinos à esquiva
esquina do municipal
e o som que me segue à praça da
república sucumbe a ofertas
de melodia

meio-dia

***


Moto contínuo

Um homem levanta um braço
seguro à barra que abranda
o solavanco diário
a pancada suave e seca
a cordial e civilizada forma com que as Horas
esquartejam o dia
o ano
a vida

Salvo à luz que esquadrinha
a epiderme e imprime
rugas à face imóvel
o homem entrega-se ao motor que o embala no grande sonho

***

Centenário

Shigeo de Hiroshima
veio pra Pompeia
lavrar café e fazer de feijão
amai, manju, sete
filhos, 16 netos

Shigeo monge zen bebia
saquê não, cachaça,
pinga em São Paulo,
birita para os íntimos

e gostava de carne-seca
e amendoim bem torrado

No Japão sonhava ser
antropólogo
Do Brasil que o fez
doceiro dizia:
melhor país do mundo
e sentia a brisa de café
que amorna o ar e o
hálito da manhã

***


Chafariz

Porém eu vi no chão suja e calcada
A transparente anêmona dos dias.
Sophia de Mello

São Paulo devia ter
mar São Paulo devia
canta iara bela
à beira da fonte
da sé que a fé
refrata

desbaralhando breus caminhos
com o pente dos dedos longos negros
unhas feitas a dente
a menina se mira musgo e mijo
nas esmeraldas

que em canto doce
odoyá

arredondam as retas
sem beirais
da gótica catedral

***

Alfândega

O menino que Jesus comprou
e levou de avião com promessas
altas
brilhantes

dorme
à espera no âmago
estômago
em pó

branquinho
Poemas aos homens do nosso tempo
Hilda Hilst

Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.


* * *

Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua

Aquietá-los.

Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.

* * *

Bombas limpas, disseram? E tu sorris
E eu também. E já nos vemos mortos
Um verniz sobre o corpo, limpos, estáticos,
Mais mortos do que limpos, exato
Nosso corpo de vidro, rígido
À mercê dos teus atos, homem político.
Bombas limpas sobre a carne antiga.
Vitral esplendente e agudo sobre a tarde.
E nós na tarde repensamos mudos
A limpeza fatal sobre nossas cabeças
E tua sábia eloqüência, homens-hienas

Dirigentes do mundo.


* * *

Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.


* * *

Ávidos de ter, homens e mulheres caminham pelas ruas.
As amigas sonâmbulas, invadidas de um novo a mais querer,
Se debruçam banais, sobre as vitrines curvas.
Uma pergunta brusca, enquanto tu caminhas pelas ruas.
Te pergunto: E a entranha?
De ti mesma, de um poder que te foi dado
Alguma coisa clara se fez? Ou porque tudo se perdeu
É que procuras nas vitrines curvas, tu mesma,
Possuída de sonho, tu mesma infinita, maga,
Tua aventura de ser, tão esquecida?
Por que não tentas esse poço de dentro
O incomensurável, um passeio veemente pela vida?

Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada
De ter teu rosto verdadeiro, desejarias nada.


* * *

Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.

Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto

Não cabe no meu canto.

Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974) - Poemas aos Homens do nosso Tempo.
In: Poesia: 1959 - 1979. São Paulo: Quíron; [Brasília]: INL, 1980.
A defesa do poeta
Natália Correia


Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em criança que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e Sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
em que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.

Antologia da poesia portuguesa contemporânea. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.