quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Sophia de Mello

Navio Naufragado

Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes.

In Obra poética III, 1991


***

A anémona dos dias

Aquele que profanou o mar
E que traiu o arco azul do tempo
Falou da sua vitória
Disse que tinha ultrapassado a lei
Falou da sua liberdade
Falou de si próprio como de um Messias
Porém eu vi no chão suja e calcada
A transparente anêmona dos dias.


In No tempo dividido e Mar novo, 1985.

***


As amoras


O meu país sabe as amoras bravas

no verão.

Ninguém ignora que não é grande, nem inteligente, nem elegante o meu país,

mas tem esta voz doce de quem acorda cedo para cantar nas silvas.

Raramente falei do meu país, talvez

nem goste dele, mas quando um amigo

me traz amoras bravas

os seus muros parecem-me brancos,

reparo que também no meu país o céu é azul.

***

Cantar

Tão longo caminho

E todas as portas

Tão longo o caminho

Sua sombra errante

Sob o sol a pino

A água de exílio

Por estradas brancas

Quanto Passo andado

País ocupado

Num quarto fechado

As portas se fecham

Fecham-se janelas

Os gestos se escondem

Ninguém lhe responde

Solidão vindima

E não querem vê-lo

Encontra silêncio

Que em sombra tornados

Naquela cidade

Quanto passo andado

Encontrou fechadas

Como vai sozinho

Desenha as paredes

Sob as luas verdes

É brilhante e fria

Ou por negras ruas

Por amor da terra

Onde o medo impera

Os olhos se fecham

As bocas se calam

Quando ele pergunta

Só insultos colhe

O rosto lhe viram

Seu longo combate

Silêncio daqueles

Em monstros se tornam

Tão poucos os homens

***


São Tiago de Compostela

Assim pudesse o poema

Como a pedra esculpida

Do pórtico antigo

Ter em si própria a mesma

Compacta alegria

Cereal claridade

Ante o voo da ave

Do espírito que ergue

Os pilares da nave


In Ilhas, Obra Poética III.

Biografia


Tive amigos que morriam,

amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-te na luz, no mar, no vento.

In No tempo dividido e Mar novo, 1985.

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