segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Em pleno inferno plexo astral

me sinto 

olho

entorno


à terceira margem

respiro rio 

fundo


na busca do âmago 

ultrapassar o ego

exige fôlego


sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Pés brincantes sabem

a redondeza grave do chão 

rolam e deslizam 

pulam amarelinha 

nos seixos molhados 

à beira d'água

Pés lembram quedas

 fraturas e torções 

Topam com pedras 

e descaminhos 

Pés descobrem trilhas 

sem mapa

Sonham reinos

 insondáveis 

Pés pedem solas andarilhas 

a quem basta o pisar

singrando ventos 

farejando rotas 

ignotas nos calcanhares


Foto: Nádia Tobias Yanim




 Lateja 

aqui dentro

uma ausência: será

amor?


ou ânsia de ter

o mundo brotando 

num pulso?


batem as folhas 

da veneziana

vento de tempestade

gestado

no útero da calmaria


a boca voraz

deste verão antecipado

engole a primavera

queima a pele dos devaneios

pescados à sesta


exilado na estante de livros

o ciclame no vaso

derrama

suas pétalas em lágrimas


salvo do incêndio

à sombra se sonha

o que resta de cor 

e delicadeza


quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Não devia ser "de vez em sempre"?

De vez em quando a gente precisa:

  • tomar umas
  • dançar
  • namorar
  • conversar com migs
  • passear sem tempo de voltar
  • devanear
  • escrever
  • ler poesia
  • cantar no chuveiro
  • brincar na chuva
  • rolar na areia
  • fazer nada.

Por que será que só sobra de vez em quando pro que é essencial?

Viagem ou jornada?

 

Viagem é a caminhada sem fim predeterminado, sem objetivos definidos. É um pisar no chão em ritmo pessoal, aberto ao devaneio, ao sonhar acordado, livre da tirania do relógio, da cobrança de ser produtivo.

Jornada, do latim diurnus, é o "caminho que se pode percorrer em um dia", lembra a etimologia, memória das palavras. É o percurso produtivo, diurno, regido pelo Chronos e pela necessidade de prestar contas ao padrão e ao patrão.

Não à toa o discurso corporativo se incomoda com viagens, reais ou astrais. Elas não cabem ao/à homo/mulier produtivus, que deve vender sua força e tempo de vida para ter direito a consumir e pagar seus tributos e os devidos juros ao capital, como todo/a homem/mulher "de bem". De modo que ter tempo livre para simplesmente caminhar ao léu não é desejável nem respeitável. A escolha de palavras sempre revela uma intenção, consciente ou não.


quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Oriente-se

 

lendas vindas
das terras lindas
de orientes findos
me façam feliz
feito a vida não faz

Paulo Leminski

Imagem: Yume (夢), Sonhos, de Akira Kurosawa





domingo, 23 de agosto de 2020

Labirinto-corpo

 Escreve com o coração na ponta dos dedos. Quando o pulso tá calado, perdido nos labirintos deste corpo, o que você sente? Que palavra te ressoa?

O corpo fala, fala, corpo? Te habitam mil, oito mil seres. Infinitas presenças correm sanguíneas vindas de outras vidas e se apresentam neste corpo, neste tempo. Breve presente que se desembrulha em outras formas, origami.
Onde está o pulso? Tateia e não ouve, mas sente o grito latente, em ondas, prestes a emergir do poço.



quinta-feira, 11 de junho de 2020

Ser quem se é


"... ser nós mesmas faz com que nos isolemos de muitos outros e, entretanto, ceder aos desejos dos outros faz com que nos isolemos de nós mesmas"
(Clarissa P. Estés, "Vasalisa, a sabida", in Mulheres que correm com lobos)

Leonora Carrington - The Guardian of the Egg
Tela: Leonora Carrington, The Guardian of the Egg

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Deambulações oblíquas, António Ramos Rosa

É porque nos decepcionamos
que procuramos a perfeição
O símbolo é o arco que abarca a totalidade
e por ele nós podemos alcançar
o que está do outro lado dela
A transcendência do que não vemos
a outra face do todo
é uma perspectiva simbólica
inerente à imediata presença
da face que estamos vendo
Assim o que vemos e o que não vemos
no objecto que estamos olhando
é a coisa em si que o animal não apreende
Não somos nunca o que está diante e separado
o que representa e o representado
em separada oposição
de ideia e objecto
de consciência e corpo
O que em nós está separado
em espírito e em corpo
está ao mesmo tempo unido
numa tensão oblíqua
que nos insere no mundo
E como seres simbólicos
e como seres-no-mundo
somos o que já somos
somos o que ainda não somos

 António Ramos Rosa, in Deambulações oblíquas, 2001

terça-feira, 19 de maio de 2020

La mujer tejedora


"La mujer tejedora está muy presente en tus libros para reflexionar en torno al lugar de la mujer en el mundo andino. ¿Para que te sirve?
Es una gran metáfora de la interculturalidad. Las mujeres siempre tejen relaciones con el otro, con lo otro. Con lo salvaje, con lo silvestre, con el mercado, con el mundo dominante. Siento que hay una capacidad de las mujeres de elaborar relaciones de interculturalidad a través del tejido. Es un reconocer también que el cuerpo tiene sus modos de conocimiento. Aquí, en el colectivo, decimos que 'la mano sabe'." Entrevista com Silvia Rivera Cusicanqui: “Tenemos que producir pensamiento a partir de lo cotidiano” Tela de Rozy Pereza, La mujer tejedora

quinta-feira, 14 de maio de 2020

La mar

que o mar me tome barca à beira desembarque de mim cantos de espera m'água encharque meu tronco vento inspire minhas velas com sede de velejar

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Poesia é meu sal

"Tudo que não invento é falso", diz Manoel de Barros. E eu sigo com ele. Só a invenção nos salva do silencioso desespero. Só a ficção nos permite transbordar as paredes de carne e osso. Só a arte nos impulsiona a abandonar cansados portos e navegar. Só a poesia nos faz ouvir a música subcutânea e transformar grito em canto. Só a dança nos faz ultrapassar as ilusórias paredes que te separam de mim e nos resgata ao um. Só o amor nos faz delirar e ir além.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

À beira

Minha canoa virada na maré cheia espera calada a trilha d’água que a lua alumeia.
Enquanto os grilos parolam, a solidão que busco entre burburinhos dói em semente empedrada no peito. Em canção que não lembro e não esqueço. Marulha nos lençóis sanguíneos desta carne de lenha.
Entre os canais de linfa navego esta sede que não cessa, esse mar desértico que não seca, esse rosto que se mostra-esconde dentre as névoas de um sonho candente.
Espero apesar da desesperança cansada, dessa bandeira desfraldada, desse mar salgado pelas lágrimas de quem ficou à beira. 


Texto: Tamara Castro.
Foto: Canoa Guató à beira da baía Uberaba, Ilha Ínsua, Terra Indígena Guató. Suki Oxaki, 2006. Povos Indígenas do Brasil.

Era alquimia... e eu nem sabia

Um dos meus sonhos de menina era ser alquimista - eu não sabia o nome e dizia que queria ser cientista maluca pra fazer poções coloridas e perfumadas que fumegavam em longos e lindos vidros... Também não sabia que houve um tempo em que as mulheres "cientistas malucas" eram chamadas bruxas e queimadas em fogueiras nada coloridas e perfumadas. Soube disso um pouco mais tarde e também enfrentei minhas fogueiras, como todas nós, mulheres em busca de ser quem somos, de ecoar outras vozes e seguir caminhos não traçados nos mapas da Terra Plana.

"Bruxas eram mulheres empoderadas. 
Insubordinadas.
Livres. 
Que conheciam as ervas, os mistérios da natureza, da vida, da morte. Seu corpo, seu ciclo menstrual, seu poder. 

Muitas não se casavam, preferiam viver na floresta com os animais e suas amigas. Ou sozinhas com suas plantas. 
Recusavam os padrões da normatividade.
As que se casavam certamente não eram submissas a seus companheiros como as mulheres da época. 
Tinham sabedoria da ancestralidade, curavam doenças, dançavam pra lua, contavam histórias. 
Tinham visões, sonhos, intuições. 
Eram mulheres, apenas. 
Foram perseguidas e mortas na idade média no maior feminicídio já visto, por representarem uma ameaça ao patriarcado. Por saberem o que os homens não entendiam.
Associadas a imagens de feias, assustadoras, velhas, solitárias, loucas e principalmente más. 
A caça às bruxas foi possivelmente o início do afastamento das mulheres de sua própria essência.
Por questão de sobrevivência passaram a renegar sua natureza selvagem, se esconder e a ver como amaldiçoado seu corpo de mulher. 
Carregamos a história de todas as mulheres e o fogo da inquisição arde em nós. 
Porém dele renascemos! E estamos a resgatar, dia após dia, lua após lua, nossa força, sabedoria e poder ancestral, que sempre viveu em nós."

Texto: Autoria desconhecida
Ilustração da alquimista Maria, a Judia. Autor: Michael Maier (1568 - 1622), médico, filósofo e alquimista alemão.

terça-feira, 31 de março de 2020

Diálogo familiar em quarentena

Mãe: - Cadê a lista de compras que a gente fez ontem, Nani?
Nani: - Pedro! Você pegou?
Pedro: - Tô falando? Tudo eu nessa casa! Tudo eu! Aposto que quando apareceu o primeiro caso de corona você berrou: Pedro!
Mãe: - Falei assim: esse moleque! Avisei pra ele não comer aquele morcego!

sexta-feira, 27 de março de 2020

Pedra de rio

"Perdido rio De você, ah meu rio Você é meu rio E eu, pedra de rio"

Essa canção da Luli e da Lucina gravada pelo Ney Matogrosso é muito especial pra mim. Desperta o rio sufocado sob o asfalto dos dias. Me traz memórias de menina cavando a terra da minha ruazinha chorona, que, como eu, vertia água a qualquer cutucada - uma manteiga derretida, dizia minha mãe rs.
O Butantã, contam os antigos, era um brejão. São Paulo é uma terra de rios mutilados pelo trem do progresso que retificou suas curvas, cobriu de lixo seu leito e emudeceu sob o asfalto seu canto. Sem ar, sem sol, sem seus verdes cílios, eles sofrem, como pessoas presas no calabouço.

Eu ouço seu choro subcutâneo e sofro junto. Alguns calados, outros caudalosos, sofremos todos. Mas muitos sonhamos resgatar essas vozes silenciadas. Canto pra que esse sonho ecoe os murmúrios d'água e eles venham à tona. Que tenhamos força, coragem e inspiração pra ajudar nossos perdidos rios voltarem a fluir e fazer a alegria de passarinhos, crianças, plantas, peixes, capivaras.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Niilismo x hedonismo na mesa do almoço

- Ué, Yanni, você não vai chorar e gritar "mamãe, olha o Pedro!"???
[Silêncio]
- Que chato... Eu não consigo mais irritar a Yanni... Minha vida perdeu o sentido.
- Se sua vida perdeu o sentido, então se mata.
- Nossa, olha isso, mamãe, que frieza!
[Silêncio]
- Então é assim, Yanni? Se a vida não tem sentido, a pessoa se mata? Você tá recomendando suicídio?
- Ué, 90% das pessoas fazem isso.
- Tá doida? Se fosse assim, a humanidade tinha se exterminado antes do coronavírus!
- Eu acho...
- Yanni, ninguém vê sentido na vida, só se inventa um. A vida não tem sentido.
- Tem sim.
- Ah é? Então qual é o sentido da vida, Yanni?
- Viver.
[Silêncio]
- Nossa, mamãe, a Yanni virou filósofa.
- É isso: o sentido da vida é viver. Viver, amar... e comer. Principalmente comer.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Sobre um poema (Herberto Helder)

Um poema cresce inseguramente na confusão da carne, sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser. Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência ou os bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol. Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor, os rios, a grande paz exterior das coisas, as folhas dormindo o silêncio, as sementes à beira do vento, - a hora teatral da posse. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade as órbitas, a face amorfa das paredes, a miséria dos minutos, a força sustida das coisas, a redonda e livre harmonia do mundo. - Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério. - E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

poeira vento cio
ciando a pele
livres pelos poros
pedra rolada
rio
riso solto calado

estrada
disso tudo nada
preciso
limar palavras gastas
de penso, logo
insisto