segunda-feira, 27 de março de 2023



"Além de mim, quero apenas
essa tranquilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.

Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto do meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha."

Olga Savary



 

segunda-feira, 13 de março de 2023

poeta é ser que nasce do avesso
tem nervos à flor da pele
entranhas expostas à luz
e vive de olhos abertos ao breu

então delira imagens irreais
balbucia ao léu sentenças ilógicas 
à lei do mercado
às frases feitas pelo coach da hora
e adequadas à ABNT 

poeta é ser perdulário
abandona quadras pelo caminho
bradando versos que ninguém escuta
pois fala a língua do abismo
sabe sem saber o abre-te-sésamo

poeta é ser distraído
atravessa sem notar o portal invencível
mas não vê o cobiçado tesouro
motivo de capas e espadas
antes queda absorto
nas joias cores das asas do besouro

e ninguém entende
alguém tão inepto
mergulhar no concreto
e criar pontes de nuvem
com palavras insanas e ações vadias

poeta é ser extraviado
sem noção de tempo-espaço
por isso esquece a hora do almoço
se perde entre quatro paredes
e encontra Pasargada
 refletida na lama 

um dia num vão da praça
num dia vadio como ele
o poeta abre os olhos pra dentro
e morre à míngua
deixando na terra uma carcaça anônima
e no ar uma catinga de infinito

terça-feira, 22 de junho de 2021

A esperança teimosa é a alegria, apesar dos pesares

 "Metade dos/das jovens hoje quer deixar o Brasil", afirma a manchete da FSP. O "país do futuro" tá deixando o futuro pra lá, enquanto lambe as botas de um passado militar, patriarcal, violento, assassino de sonhos? 

Não tem como, diante disso, não me lembrar de "Terra estrangeira", do Walter Salles e Daniela Thomas e da canção  "Vapor barato", do Jards Macalé, na voz da Gal. 


"Eu estou tão cansado, mas pra não dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general cheio de anéis
Eu vou descendo por todas as ruas
Eu vou tomar aquele velho navio"

Anos 90, na minha adolescência/juventude, vi vários amigos e amigas tomarem "aquele velho navio". Uns foram pro Japão ser dekassegui, outros pra Europa, outros trabalhar pro tio Sam. Tomar o primeiro navio... Pra qualquer lugar onde se veja uma nesga de horizonte, um pouco de ar pra respirar e sonhar... Tão diferente de outros jovens, alguns anos depois, partindo cheios de expectativas em programas de extensão universitária, ciência sem fronteiras, cooperação internacional para alfabetização... 

Sem querer (querendo, como diria o Chaves) idealizar um passado próximo e cegar aos erros dos nossos governos de esquerda. Mas tínhamos - e temos - o direito de sonhar e realizar outros mundos. Esse direito humano, demasiado humano, a transcender o mero sobreviver ("a gente não quer só comida" - muito menos restos de podres poderes): é isso o que a necropolítica fascista quer matar, exterminar. 

"Sonhar não faz parte dos trinta direitos humanos que as Nações Unidas proclamaram no final de 1948. Mas, se não fosse por causa do direito de sonhar e pela água que dele jorra, a maior parte dos direitos morreria de sede", lembra Eduardo Galeano.

O sonho, a esperança, a alegria, esses motores da transformação, incomodam os opressores. Pode ser por simples teimosia, pela herança atávica de um bisavô anarquista, de uma bachan que não se conformou com o casamento forçado com um espancador e fugiu para o Brasil, de um pai comunista preso na ditadura militar, uma mãe zen-umbandista. De todos aqueles e aquelas que me precederam se negando, consciente ou inconscientemente, a seguir a estrada traçada pelos tratores e caminhões atropeladores de flores. Talvez em honra e homenagem a eles e elas, mas principalmente, em nome da minha alma, me nego a deixar que esse passado travestido de futuro distópico mate a alegria, ainda que miúda, de sonhar outras possibilidades. Essa alegria, miúda, cotidiana, presente nas brechas, segue florindo o asfalto. "É feia. Mas é uma flor", lembra Drummond, sempre presente.


segunda-feira, 17 de maio de 2021

Canto a Odoyá, canto ao mar íntimo

 

canta a concha
seu mar íntimo
entre muros de luar

madrepérola
o palácio
onde entoa seu coral

à luz solar
esturrica
torna areia

o úmido segredo
desenreda
em fios de medo

o mar é só deserto
sem o canto
da sereia


Mar: sinto
a falta da falta
do ar que me inspiras 

a falta do ímpeto de ondas
quebrando em praias
de leite beijos carícias 

a falta do pulso sob a pele
partindo a galope
e olhos nublados
desmanchando fronteiras

entre mim e as coisas
transbordar-me em chama até
as cinzas eu sinto
a falta do que tive
num só instante

sonho gravado em quadras
de versos esgarçados
no avesso duma vida
esboçada

Poemas e leitura minhas, Tamara Castro




terça-feira, 16 de março de 2021

Canto

 Em terra de cabinha tem uma fonte

d’água doce cantadeira

tramada em fios de ouro

veios de musgo

aguapés e ninfeias

cortejadas por pássaros e libélulas


Tem canto, conto

brincadeira

é gente indo e vindo

nessa terra

povoada de bem-viver


Em terra de cabinha tem a gente

de novo cabinha 

pé descalço, sola preta 

cabinha cabreira

brincante de terra

caçadora de águas secretas

pirata com seus mapas furados


Essa minha terra de cabinha

é sim, uma utopia

Um não lugar

Querência que se desenha

em compasso

na pisada do chão

no esfumado grafite da imaginação


Lugar sagrado que mora em mim

A terra sem males guarani

Fincada na linha cigana do horizonte

Lá onde se encaminha 

a minha caravana

levantando o pó da estrada


O ar se enche de cantos

com choro risonho de rabeca 

saias giram coloridas 

cães pulam e latem alegres


O coração palpita

Olhos e ouvidos alertas

Mãos e pés a postos

Eis o meu destino

terça-feira, 9 de março de 2021

Amaré...

 O que é me amar? É amar meu corpo. Verdade autêntica pra quem eu sou hoje. Aqui agora. Mas não foi essa a resposta que me dei durante muito e muito tempo. 

Me amar? O que é isso? Preciso do amor do outro. Preciso desesperadamente que me amem. E muito. Afinal, quem sou eu pra me amar? Pra me amar - ou pra ser amada - teria de ser assim assada num futuro próximo ou distante, ou num passado remoto e idílico. Nunca euzinha, eu mesma, aqui agora.

É fruto de uma trilha longa e árdua mas sim - reconheço hoje - linda poder dizer que começo a me amar, e isso passa por amar meu corpo. Não, nada a ver com esse amor narcisista corpo-barbie ou body builder - termo que aprendi faz pouco tempo com as crianças - eles adoram falar "boribilder" fazendo poses engraçadas e rindo muito. 

Amo meu corpo porque é nele que moram minhas muitas histórias. A poesia que nasce dos meus olhos e me permite respirar em cima d'água. As melodias, cantigas, ideias, histórias e tantas estórias que passeiam pelo ouvido. Os mil sabores que esta vida loucamente criativa concebe e a língua me presenteia trazendo pra dentro de mim. As texturas, os arrepios, os gozos que me perpassam a pele, o tato. Os cheiros  que atraem e repelem, levam e trazem a tantos lugares, presentes, lembrados ou imaginados.

É nesse corpo que habito e é nele que posso transcender em busca de ser quem sou. Por isso aqui e agora digo de novo: me amar passa por amar meu corpo, minha presença neste mundo. E essa é uma verdade autêntica e temporária como tudo na vida.

Ah, esta imagem linda é da Midori Yamada




segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Em pleno inferno plexo astral

me sinto 

olho

entorno


à terceira margem

respiro rio 

fundo


na busca do âmago 

ultrapassar o ego

exige fôlego