essa tranquilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.
Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto do meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha."
Olga Savary
então delira imagens irreais
balbucia ao léu sentenças ilógicas
à lei do mercado
às frases feitas pelo coach da hora
e adequadas à ABNT
poeta é ser perdulário
abandona quadras pelo caminho
bradando versos que ninguém escuta
pois fala a língua do abismo
sabe sem saber o abre-te-sésamo
poeta é ser distraído
atravessa sem notar o portal invencível
mas não vê o cobiçado tesouro
motivo de capas e espadas
antes queda absorto
nas joias cores das asas do besouro
e ninguém entende
alguém tão inepto
mergulhar no concreto
e criar pontes de nuvem
com palavras insanas e ações vadias
poeta é ser extraviado
sem noção de tempo-espaço
por isso esquece a hora do almoço
se perde entre quatro paredes
e encontra Pasargada
refletida na lama
um dia num vão da praça
num dia vadio como ele
o poeta abre os olhos pra dentro
e morre à míngua
deixando na terra uma carcaça anônima
e no ar uma catinga de infinito
Não tem como, diante disso, não me lembrar de "Terra estrangeira", do Walter Salles e Daniela Thomas e da canção "Vapor barato", do Jards Macalé, na voz da Gal.
"Eu estou tão cansado, mas pra não dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general cheio de anéis
Eu vou descendo por todas as ruas
Eu vou tomar aquele velho navio"
Anos 90, na minha adolescência/juventude, vi vários amigos e amigas tomarem "aquele velho navio". Uns foram pro Japão ser dekassegui, outros pra Europa, outros trabalhar pro tio Sam. Tomar o primeiro navio... Pra qualquer lugar onde se veja uma nesga de horizonte, um pouco de ar pra respirar e sonhar... Tão diferente de outros jovens, alguns anos depois, partindo cheios de expectativas em programas de extensão universitária, ciência sem fronteiras, cooperação internacional para alfabetização...
Sem querer (querendo, como diria o Chaves) idealizar um passado próximo e cegar aos erros dos nossos governos de esquerda. Mas tínhamos - e temos - o direito de sonhar e realizar outros mundos. Esse direito humano, demasiado humano, a transcender o mero sobreviver ("a gente não quer só comida" - muito menos restos de podres poderes): é isso o que a necropolítica fascista quer matar, exterminar.
"Sonhar não faz parte dos trinta direitos humanos que as Nações Unidas proclamaram no final de 1948. Mas, se não fosse por causa do direito de sonhar e pela água que dele jorra, a maior parte dos direitos morreria de sede", lembra Eduardo Galeano.
O sonho, a esperança, a alegria, esses motores da transformação, incomodam os opressores. Pode ser por simples teimosia, pela herança atávica de um bisavô anarquista, de uma bachan que não se conformou com o casamento forçado com um espancador e fugiu para o Brasil, de um pai comunista preso na ditadura militar, uma mãe zen-umbandista. De todos aqueles e aquelas que me precederam se negando, consciente ou inconscientemente, a seguir a estrada traçada pelos tratores e caminhões atropeladores de flores. Talvez em honra e homenagem a eles e elas, mas principalmente, em nome da minha alma, me nego a deixar que esse passado travestido de futuro distópico mate a alegria, ainda que miúda, de sonhar outras possibilidades. Essa alegria, miúda, cotidiana, presente nas brechas, segue florindo o asfalto. "É feia. Mas é uma flor", lembra Drummond, sempre presente.
canta a concha
seu mar íntimo
entre muros de luar
madrepérola
o palácio
onde entoa seu coral
à luz solar
esturrica
torna areia
o úmido segredo
desenreda
em fios de medo
o mar é só deserto
sem o canto
da sereia
Mar: sinto
a falta da falta
do ar que me inspiras
a falta do ímpeto de ondas
quebrando em praias
de leite beijos carícias
a falta do pulso sob a pele
partindo a galope
e olhos nublados
desmanchando fronteiras
entre mim e as coisas
transbordar-me em chama até
as cinzas eu sinto
a falta do que tive
num só instante
sonho gravado em quadras
de versos esgarçados
no avesso duma vida
esboçada
Poemas e leitura minhas, Tamara Castro
d’água doce cantadeira
tramada em fios de ouro
veios de musgo
aguapés e ninfeias
cortejadas por pássaros e libélulas
Tem canto, conto
brincadeira
é gente indo e vindo
nessa terra
povoada de bem-viver
Em terra de cabinha tem a gente
de novo cabinha
pé descalço, sola preta
cabinha cabreira
brincante de terra
caçadora de águas secretas
pirata com seus mapas furados
Essa minha terra de cabinha
é sim, uma utopia
Um não lugar
Querência que se desenha
em compasso
na pisada do chão
no esfumado grafite da imaginação
Lugar sagrado que mora em mim
A terra sem males guarani
Fincada na linha cigana do horizonte
Lá onde se encaminha
a minha caravana
levantando o pó da estrada
O ar se enche de cantos
com choro risonho de rabeca
saias giram coloridas
cães pulam e latem alegres
O coração palpita
Olhos e ouvidos alertas
Mãos e pés a postos
Eis o meu destino
O que é me amar? É amar meu corpo. Verdade autêntica pra quem eu sou hoje. Aqui agora. Mas não foi essa a resposta que me dei durante muito e muito tempo.
Me amar? O que é isso? Preciso do amor do outro. Preciso desesperadamente que me amem. E muito. Afinal, quem sou eu pra me amar? Pra me amar - ou pra ser amada - teria de ser assim assada num futuro próximo ou distante, ou num passado remoto e idílico. Nunca euzinha, eu mesma, aqui agora.É fruto de uma trilha longa e árdua mas sim - reconheço hoje - linda poder dizer que começo a me amar, e isso passa por amar meu corpo. Não, nada a ver com esse amor narcisista corpo-barbie ou body builder - termo que aprendi faz pouco tempo com as crianças - eles adoram falar "boribilder" fazendo poses engraçadas e rindo muito.
Amo meu corpo porque é nele que moram minhas muitas histórias. A poesia que nasce dos meus olhos e me permite respirar em cima d'água. As melodias, cantigas, ideias, histórias e tantas estórias que passeiam pelo ouvido. Os mil sabores que esta vida loucamente criativa concebe e a língua me presenteia trazendo pra dentro de mim. As texturas, os arrepios, os gozos que me perpassam a pele, o tato. Os cheiros que atraem e repelem, levam e trazem a tantos lugares, presentes, lembrados ou imaginados.
É nesse corpo que habito e é nele que posso transcender em busca de ser quem sou. Por isso aqui e agora digo de novo: me amar passa por amar meu corpo, minha presença neste mundo. E essa é uma verdade autêntica e temporária como tudo na vida.
Ah, esta imagem linda é da Midori Yamada