segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

"Amar", Carlos Drummond de Andrade

blissfulbohemian:  imajica1817:  blissfulbohemian:  (via essencereflection…
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.


Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

In: Claro enigma, 1951.
Imagem: Juan Romero


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

"Talvez a minha vocação não seja esta
ou seja esta por ter perdido o espaço que nunca tive
Era algo selvagem algo violentamente vivo
o espaço na sua integridade deslumbrante
o mar na sua plenitude de felina substância
as ilhas de ouro verde as ilhas solares
as grandes pradarias com os seus cavalos vagarosos e tranquilos
a liberdade de ser o fogo com as suas veias indolentes
Sim eu perdi todo esse espaço que nunca tive
e se escrevo é para inventar um espaço a partir desta perda
na ficção de respirar o que há de mais selvagem e mais nu
como se estivesse entre escarpas verdes inundado pela espuma
ou como se estivesse no esplendor do deserto à hora do meio-dia
Mas o que faço não é mais do que um trabalho de insecto
que perfura a cal e as páginas dos livros
para traçar a sua caligrafia insignificante
na nulidade de uma matéria árida e anónima"
António Ramos Rosa, Deambulações oblíquas, 2001
Imagem relacionada

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Por que se negar à tormenta
se a massa revolta venta
e só assim se movimenta?


Quando a calma é tumulto
a turba é onde nos sentimos alma
onde grita o silêncio 
a vida morre inteira 

em cio

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Drummond e a jurubeba teimosa

Era só uma rachadura, solitária e triste, na calçada. Solitária e triste é coisa de gente metida a poeta que bota sentimento em tudo o que vê. Enfim, pros menos melancólicos, era só uma rachadura.

Numa manhã nevoenta, ou talvez ensolarada, sabe lá, neste clima doido da grande sampa, um passarinho inspirado deixou uma fértil contribuição, e na brecha começou a crescer um brotinho.


Claro que os urbanistas amadores, com seu ímpeto em manter tudo devidamente reto, cinza e chato, quiseram arrancar o brotinho. "Posso cortar? É só mato! Vai sujar a calçada". Mas o pezinho teimoso ganhou minha simpatia. Nossas almas roceiras se reconheceram de pronto. "Deixa o mato aí, o que será que será?"

Alguns meses depois, o mato atrevido se revelou um pé de jurubeba. Agora, jovem senhora, já dá flores e frutos, pra festa dos passarinhos!

A jurubeba teimosa "furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio", dando vida ao poema do Drummond, mais atual que nunca...
         

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Devaneios entre sonho, Rosa e Bergman

Alguém já disse que para fazer arte é preciso certo horror à vida, à vida "como ela é ". O artista é "a menina de lá ", do Guimarães Rosa, uma ponte, uma canoa, ou um tronco semi-enraizado, à beira do abismo, prestes a zarpar. Mas se mantém à terceira margem, entre: o cá e o lá, o que já foi e o que será. É o que talvez jamais seja, a sede que nunca cessa, a flor que mal desabrocha já entrega sua carne d'água ao vento. A criança eterna. O perene vir a ser. A chama que desvela, sem beiras, desejos e medos, utopias e distopias que nunca ousaríamos conceber, mas que latejam dentro, no fundo do fundo infindo. Horrores e maravilhas brotam dos olhos, mãos e boca do artista, a quem seguimos e fugimos encantados, antes de pensar pregá-lo à cruz. Mas ele já vai longe, nos fumos da estrada que não pára.



quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Poesia pra respirar em tempos sem trégua


bruma sombra espelho
maya iludida mentira
tudo o que me vestem
os olhos
pedem
a cor inefável
da tua manta
mana Fantasia
sem ti cinza insossa
é a Vida
vera carne crua
destemperada nua
cede ao fogo lento
o banho-maria
amainando as pedras
à beira da trilha
florindo as brenhas
sem-vergonhas
Marias
vai-te ao vento vadio
dente de leão banguela
cansado de guerra
folha seca
fardo de ouro velho
pesada de antigos verões
mas leve à brisa
ciranda
canta tua breve fábula
ora bela na tristeza
da feiura e passa

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Sobre amor e utopia

O sonho emprenha a vigília.
A realidade se molha, arredonda.
E pare em nós uma linda mestiça

Utopia
nos inspira
e ilumina a trilha.

Bem-vindo esse amor, bem-vindo!

quarta-feira, 3 de julho de 2019

A mulher esqueleto

"A busca moderna pela máquina do movimento perpétuo equivale à busca de uma máquina de amor perpétuo. Não surpreende que as pessoas que tentam amar fiquem confusas e atormentadas e que, como na história dos sapatinhos vermelhos de Hans Christian Andersen, dancem loucamente, incapazes de parar com a agitação frenética, e passem rodopiando direto pelas coisas que, no fundo do coração, elas mais prezam." (Clarissa Pínkola Estés, Mulheres que correm com os lobos - A mulher esqueleto)

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Correndo com os lobos


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"Com medo ou não, é um ato de profundo amor o de se permitir ser perturbado pela alma primitiva dos outros. Num mundo em que os seres humanos têm tanto medo da 'perda', existe um excesso de muralhas protetoras contra o mergulho na numinosidade de outra alma humana."
(Clarissa Pínkola Estés, Mulheres que correm com os lobos)

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Canção (Cecília Meireles)

Não te fies do tempo nem da eternidade
que as nuvens me puxam pelos vestidos,
que os ventos me arrastam contra o meu desejo.
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!
Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
ó lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te escuto!
Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te digo...

In Retrato natural

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Crisálida

Pupa meu corpo alma se cobre de fios tecidos na saliva de palavras inauditas Imagens me habitam há tanto séculos segundos milênios. Advindas da terra que forma meus ossos? da água ferrosa que corre nas veias? do fogo que a faz bombear pelo corpo no ritmo do tambor central? do ar que me inspira? De onde vêm não sei, nunca saberei. O fato é que elas me constituem en-sinam, des-tinam, desatinam. Sou seu veículo, seu canal. Se minha boca não dá conta elas transbordam em choro verso sonho delírio insânia.

Dói senti-las pulsando sob essa parede mole e viscosa que se enreda pelos poros, narina, olhos, ouvidos, membros, sexo.
Viram uma segunda pele, me protegem de sentir sem metáforas bebo delas, ouço seus sussurros em canto,
ainda que não lhes entenda o sentido de sua fala.

Ulisses às avessas
os fios que me atam são tecidos da saliva marinha desses estranhos seres sereias.

Estas palavras não passam de seus perdigotos.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

caracteres sem espaço disputam aos berros
seu espaço entre 80 disparos
palavras fantasmagóricas me apavoram
e a alma que late 
e não morde
morre aos espasmos
claustrofóbica
no ciberespaço

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Aragem


versar - do lat. uersus
abrir sulcos na carne
da terra
arejar a matéria escura

amaciar com saliva
nãos encalacrados
entre os nós dos dedos
ossos do ofício

dentre os orifícios da máscara
que sufoca mas não
cala
verter silêncio em grito
versar gemido em canto

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sábado, 16 de fevereiro de 2019

Manhã de chuva
Origami de folha no pé de orégano 
Grilo temperado