quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Drummond e a jurubeba teimosa

Era só uma rachadura, solitária e triste, na calçada. Solitária e triste é coisa de gente metida a poeta que bota sentimento em tudo o que vê. Enfim, pros menos melancólicos, era só uma rachadura.

Numa manhã nevoenta, ou talvez ensolarada, sabe lá, neste clima doido da grande sampa, um passarinho inspirado deixou uma fértil contribuição, e na brecha começou a crescer um brotinho.


Claro que os urbanistas amadores, com seu ímpeto em manter tudo devidamente reto, cinza e chato, quiseram arrancar o brotinho. "Posso cortar? É só mato! Vai sujar a calçada". Mas o pezinho teimoso ganhou minha simpatia. Nossas almas roceiras se reconheceram de pronto. "Deixa o mato aí, o que será que será?"

Alguns meses depois, o mato atrevido se revelou um pé de jurubeba. Agora, jovem senhora, já dá flores e frutos, pra festa dos passarinhos!

A jurubeba teimosa "furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio", dando vida ao poema do Drummond, mais atual que nunca...
         

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Devaneios entre sonho, Rosa e Bergman

Alguém já disse que para fazer arte é preciso certo horror à vida, à vida "como ela é ". O artista é "a menina de lá ", do Guimarães Rosa, uma ponte, uma canoa, ou um tronco semi-enraizado, à beira do abismo, prestes a zarpar. Mas se mantém à terceira margem, entre: o cá e o lá, o que já foi e o que será. É o que talvez jamais seja, a sede que nunca cessa, a flor que mal desabrocha já entrega sua carne d'água ao vento. A criança eterna. O perene vir a ser. A chama que desvela, sem beiras, desejos e medos, utopias e distopias que nunca ousaríamos conceber, mas que latejam dentro, no fundo do fundo infindo. Horrores e maravilhas brotam dos olhos, mãos e boca do artista, a quem seguimos e fugimos encantados, antes de pensar pregá-lo à cruz. Mas ele já vai longe, nos fumos da estrada que não pára.



quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Poesia pra respirar em tempos sem trégua


bruma sombra espelho
maya iludida mentira
tudo o que me vestem
os olhos
pedem
a cor inefável
da tua manta
mana Fantasia
sem ti cinza insossa
é a Vida
vera carne crua
destemperada nua
cede ao fogo lento
o banho-maria
amainando as pedras
à beira da trilha
florindo as brenhas
sem-vergonhas
Marias
vai-te ao vento vadio
dente de leão banguela
cansado de guerra
folha seca
fardo de ouro velho
pesada de antigos verões
mas leve à brisa
ciranda
canta tua breve fábula
ora bela na tristeza
da feiura e passa