sexta-feira, 29 de maio de 2020

Deambulações oblíquas, António Ramos Rosa

É porque nos decepcionamos
que procuramos a perfeição
O símbolo é o arco que abarca a totalidade
e por ele nós podemos alcançar
o que está do outro lado dela
A transcendência do que não vemos
a outra face do todo
é uma perspectiva simbólica
inerente à imediata presença
da face que estamos vendo
Assim o que vemos e o que não vemos
no objecto que estamos olhando
é a coisa em si que o animal não apreende
Não somos nunca o que está diante e separado
o que representa e o representado
em separada oposição
de ideia e objecto
de consciência e corpo
O que em nós está separado
em espírito e em corpo
está ao mesmo tempo unido
numa tensão oblíqua
que nos insere no mundo
E como seres simbólicos
e como seres-no-mundo
somos o que já somos
somos o que ainda não somos

 António Ramos Rosa, in Deambulações oblíquas, 2001

terça-feira, 19 de maio de 2020

La mujer tejedora


"La mujer tejedora está muy presente en tus libros para reflexionar en torno al lugar de la mujer en el mundo andino. ¿Para que te sirve?
Es una gran metáfora de la interculturalidad. Las mujeres siempre tejen relaciones con el otro, con lo otro. Con lo salvaje, con lo silvestre, con el mercado, con el mundo dominante. Siento que hay una capacidad de las mujeres de elaborar relaciones de interculturalidad a través del tejido. Es un reconocer también que el cuerpo tiene sus modos de conocimiento. Aquí, en el colectivo, decimos que 'la mano sabe'." Entrevista com Silvia Rivera Cusicanqui: “Tenemos que producir pensamiento a partir de lo cotidiano” Tela de Rozy Pereza, La mujer tejedora

quinta-feira, 14 de maio de 2020

La mar

que o mar me tome barca à beira desembarque de mim cantos de espera m'água encharque meu tronco vento inspire minhas velas com sede de velejar

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Poesia é meu sal

"Tudo que não invento é falso", diz Manoel de Barros. E eu sigo com ele. Só a invenção nos salva do silencioso desespero. Só a ficção nos permite transbordar as paredes de carne e osso. Só a arte nos impulsiona a abandonar cansados portos e navegar. Só a poesia nos faz ouvir a música subcutânea e transformar grito em canto. Só a dança nos faz ultrapassar as ilusórias paredes que te separam de mim e nos resgata ao um. Só o amor nos faz delirar e ir além.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

À beira

Minha canoa virada na maré cheia espera calada a trilha d’água que a lua alumeia.
Enquanto os grilos parolam, a solidão que busco entre burburinhos dói em semente empedrada no peito. Em canção que não lembro e não esqueço. Marulha nos lençóis sanguíneos desta carne de lenha.
Entre os canais de linfa navego esta sede que não cessa, esse mar desértico que não seca, esse rosto que se mostra-esconde dentre as névoas de um sonho candente.
Espero apesar da desesperança cansada, dessa bandeira desfraldada, desse mar salgado pelas lágrimas de quem ficou à beira. 


Texto: Tamara Castro.
Foto: Canoa Guató à beira da baía Uberaba, Ilha Ínsua, Terra Indígena Guató. Suki Oxaki, 2006. Povos Indígenas do Brasil.

Era alquimia... e eu nem sabia

Um dos meus sonhos de menina era ser alquimista - eu não sabia o nome e dizia que queria ser cientista maluca pra fazer poções coloridas e perfumadas que fumegavam em longos e lindos vidros... Também não sabia que houve um tempo em que as mulheres "cientistas malucas" eram chamadas bruxas e queimadas em fogueiras nada coloridas e perfumadas. Soube disso um pouco mais tarde e também enfrentei minhas fogueiras, como todas nós, mulheres em busca de ser quem somos, de ecoar outras vozes e seguir caminhos não traçados nos mapas da Terra Plana.

"Bruxas eram mulheres empoderadas. 
Insubordinadas.
Livres. 
Que conheciam as ervas, os mistérios da natureza, da vida, da morte. Seu corpo, seu ciclo menstrual, seu poder. 

Muitas não se casavam, preferiam viver na floresta com os animais e suas amigas. Ou sozinhas com suas plantas. 
Recusavam os padrões da normatividade.
As que se casavam certamente não eram submissas a seus companheiros como as mulheres da época. 
Tinham sabedoria da ancestralidade, curavam doenças, dançavam pra lua, contavam histórias. 
Tinham visões, sonhos, intuições. 
Eram mulheres, apenas. 
Foram perseguidas e mortas na idade média no maior feminicídio já visto, por representarem uma ameaça ao patriarcado. Por saberem o que os homens não entendiam.
Associadas a imagens de feias, assustadoras, velhas, solitárias, loucas e principalmente más. 
A caça às bruxas foi possivelmente o início do afastamento das mulheres de sua própria essência.
Por questão de sobrevivência passaram a renegar sua natureza selvagem, se esconder e a ver como amaldiçoado seu corpo de mulher. 
Carregamos a história de todas as mulheres e o fogo da inquisição arde em nós. 
Porém dele renascemos! E estamos a resgatar, dia após dia, lua após lua, nossa força, sabedoria e poder ancestral, que sempre viveu em nós."

Texto: Autoria desconhecida
Ilustração da alquimista Maria, a Judia. Autor: Michael Maier (1568 - 1622), médico, filósofo e alquimista alemão.